Uma liga não resolve o problema
Era sábado e a madrugada tinha sido antes do nascer do sol. É daquelas coisas que não se devem fazer num dia daqueles, mas, a bem dizer, há valores que chamam mais alto. Três maganões com idade para terem juízo, enfiados num bólide, a cruzarem a Serra da Estrela por cima, apanhando com o nascer do sol em cheio no meio da testa.
Já no fim da descida, do outro lado da serra, essa bela localidade chamada Covilhã. Coisa desenvolvida, McDonald’s, universidade, estação de comboio, árvores nos passeios, etc.
Depois de tanta apreciação, chegámos às fraldas da Universidade da Beira Interior, ou coisa que o valha. Aqui e ali, estudantes do sexo feminino, trajadas a rigor, avançavam a passo firme pela rua abaixo. Uma delas, em especial, carregava – qual mochila de campismo – a “embalagem” do que aparentava ser um gigantesco violoncelo. Com a nossa extraordinária capacidade de análise intuitiva por observação directa, chegámos à brilhante conclusão de que ia haver farra musical, a julgar pelas moças que transportavam instrumentos musicais.
Junto a uma rotunda, com uma construção “armada ao pingarelho” a fingir de fonte, um pequeno grupo de moças aglomerava-se, certamente esperando as restantes. Mesmo à passagem, fui sacudido violentamente pela visão de umas pernas, generosa e extensivamente expostas à luz do dia, por via da inclinação perigosa para a frente da respectiva proprietária. Podia concluir-se, também, que a saia fora concebida em época de crise dos têxteis. Mini, portanto. A subir pelas pernas acima, discretamente, uns collants preto-transparente, firmemente terminados com umas poderosas ligas negras rendadas.
(continuo a pasmar-me com a minha capacidade para memorizar certas coisas da vida numa fracção de segundo e enquanto se contorna uma rotunda)
Ora, tal paisagem deveria ser motivo de satisfação e alegria. Mas, a verdade é ainda mais negra que as ligas. Há a acrescentar que a proprietária das pernas era uma moçoila arraçada de boi-almiscarado (Ovibos moschatus), na parte que toca ao volume das carnes.
Ou seja, um gajo vai por ali abaixo, descansado da vida, a pensar na beleza do interior português e das serras e das cidades serranas e das árvores e dos passarinhos e do nascer do sol, quando, inesperadamente, leva nas ventas com as pernas ao léu de alguém que deveria saber que não tem pernas andarem ao léu. É como alguém andar com um saquinho plástico transparente pendurado ao pescoço, com dez centímetros do seu próprio cocó lá dentro, qual exibicionista orgulhoso. Não há condições e provoca mau estar em quem passa.
Confesso que fiquei transtornado. Sorte que ainda não tinha tomado o pequeno-almoço. O enjoo foi tanto, que nem me atrevi comentar aquela visão com os parceiros de viagem, não fosse alguém vomitar-me o carro.
Entretanto, a coisa diluiu-se no frasco aberto da memória volátil. O sábado foi passado a desbastar uma zona de silvado em redor de uma charca. O domingo foi mais ameno e terminou com o regresso. Curiosamente, já no fim da viagem, ocorreu-me tocar no assunto da liga preta nas pernas de boi-almiscarado com os meus parceiros, como quem fala no pretérito sobre alguma tragédia. Para meu espanto, também eles tinham reparado nas ligas. Reconheceram-no com voz baixa e olhar desconsolado, e penso que o jantar já não lhes caiu bem. pickwick