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Arautos do Estendal

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Arautos do Estendal

08
Dez06

Perdem-se as palavras...

riverfl0w

"É assim, acrescentam-se coisas à ideia, ou ideias às coisas, e as palavras continuam, mas perdem-se. Quer dizer, as palavras são uma espécie de casa que abriga mas que se arruina, se descasca, perde a pintura, caem-lhe bocados, abre buracos... Lá dentro as coisas têm um espelho onde vêem as palavras, ou também vice-versa, claro. Lá vão vivendo, cada vez menos espaço, raramente entram e saem, um dia dá-se por ela: falta uma, ou há uma nova.

Como um candeeiro novo, ou um tapete. De modo que eu estou a perder as minhas palavras, quer dizer que a minha casa está a despir-sem qualquer dia ficam só as paredes, depois caem elas..."

Alberto Pimenta in "Repetição do Caos"

Releiam-se as velhas ou esperem-se novas. Palavras. riverfl0w

14
Ago06

Lexicologia

riverfl0w

Altiloquência, borzeguim, ciclóstomo, desinência, elanguescente, feérico, grácil, hiperónimo, ignífugo, jurisconsulto, lazarento, muar, necear, obnubilar, parvajola, questiúncula, rescender, solilóquio, tataranha, undívago, vulvovaginite, xairel e zaranzar.

Desculpem, mas isto algum dia tinha de ser feito. É preciso memorizar tanta coisa nesta vida e eu ainda me dou ao luxo de ter na cabeça palavrões destes. Como se algum dia viesse a dizer "Atentastes na altiloquência daquele solilóquio sobre a vulvovaginite? Até me sinto a zaranzar de tão obnubilado que estou.". Se alguém as quiser levar para posterior uso, está à vontade. Título incluído. E não, não ando a ler dicionários. riverfl0w

11
Ago05

Mais um tique nas ondas do mar

riverfl0w
Cheguei à brilhante conclusão de que é mesmo um tique. Recente, ainda por cima. Chama-se “entendes” e usa-se no fim de meia dúzia de afirmações, fechando com um ponto de interrogação. Ao princípio, ainda pensei que fosse mania da primeira pessoa a quem ouvi usar a expressão. Mas em pouco tempo - só o tempo de falar com mais alguns seres humanos lusófonos - descobri que devia ser mais uma praga. Um daqueles tiques que estão na moda. Que vão na onda. Há uns largos meses atrás, até dei por mim a divagar sobre outro tique que andava nas bocas no povo: “ou não”. Muito eu gozei sobre o assunto. Depois, cansado de gozar, comecei a ser assaltado por aquela força do além, aquele rissol de camarão disfarçado de contra-vontade, que me compelia a terminar todas as frases com “ou não”. As primeiras duzentas vezes ainda consegui conter-me, ou, nos casos piores, escapava-se-me apenas um “ou talvez”. Travei combates ferozes contra esta força. Cá dentro, neste emaranhado de teias de aranha e neurónios defeituosos, via-me a agarrar a cabeça com as mãos, num gesto tresloucado, arremessando o crânio contra a parede, rangendo entre dentes: “não dirás, não dirás”… Enfim, perdi a batalha, como todos os que são fracos de espírito. O “ou não” passou a ser usado tão frequentemente que qualquer conversa comigo tornava-se enjoativa ao fim de dez frases. Até eu ficava enjoado! E agora, faz sombra negra a perspectiva de vir, eventualmente, futuramente, a sucumbir a essa nova força obscura, a essa tentação de passar a terminar todas as frases com “entendes?”. Sobra-me, para já, a esperança de que a falta de sal e paprika que está patente nesta expressão, me convençam de que não tem jeito nenhum. Já o “ou não” tinha muitos condimentos e adaptava-se que nem uma maravilha a qualquer frase. Eu podia, por exemplo, dizer que “ah e tal hoje está um sol de rachar e as miúdas andam todas de top e saias curtas”, e terminar com um “ou não”, que dava logo muita graça, pois toda a gente percebia que eu queria dizer que podia estar um sol de estalar e as miúdas andarem todas de saias curtas e top… Uma inundação de graça, sem dúvida. Mas, aflige-me a quantidade de gente que, à minha volta, usa e abusa da nova expressão, do novo tique. Aflige-me porque, e a história e a matemática servem para o confirmar, a probabilidade de eu vir a usá-la também, é bem maior que a de vir a atropelar uma zebra. Não consigo esconder a curiosidade reles de saber onde teve origem este tique. Deve ter começado em qualquer lado. O mais certo, se estamos em Portugal, é que tenha começado na televisão, num qualquer anúncio ou numa qualquer telenovela. Na rádio não deve ser, que o povo não ouve rádio. Nos jornais e revistas, também não, que o povo não lê -compra, mas não lê. Mas deve estar a propagar-se a uma velocidade louca, porque, até pessoas que tenho ideia que vêem pouca televisão (entenda-se como menos de 2 horas por dia), já usam e abusam do tique. E, como será no futuro? Portanto, em 2004 foi o tique do “ou não”. Em 2005 é o tique do “entendes?”. E em 2006, o que será? Era bonito relançar um tique que inventei no final da década de 80: “okay, carrega no play”. Lindo, não é? Terminava praticamente todos os parágrafos (para não abusar muito da paciência do pessoal, e também porque o tique era comprido e cansativo) com um “okay, carrega no play”. Por ainda não dominar as modernas técnicas de marketing, a expressão não teve uma carreira promissora e acabou mergulhada no caldo do esquecimento e do excesso de uso. Fosse hoje, fosse papagueada frente a uma câmara de televisão, de preferência por um troglodita sorridente de boca sempre aberta, e era um sucesso garantido. Ou não. Entendes? pickwick
15
Jul04

Língua Portuguesa

riverfl0w

O muar

pobre
solípede
solipsista
assolapado.
em solilóquios
abastosamente
faz-se abarroado.
sonhando-se alfaraz
é apenas, por alcançadura,
acurvilhada e alcachinada alimária,
reles abochonhado animal aguachado.

Alexandre Monteiro
7 de Julho de 2004, em No Arame
(poema acerca de Durão Barroso)

03
Jun04

Ou não

riverfl0w
Há modas que ficam bem e são bonitas de se ver. Lembro-me da moda das mini-saias, da moda das mini-saias-ultra-leves, da moda das mini-saias-cinto, da moda dos topless, da moda dos underless, da moda dos tudoless, da moda das cuequinhas-tanga, da moda do é-o-bicho, da moda da argola p’ro boi no umbigo, da moda do yá, da moda de ter-a-mania-que-anda-na-moda, enfim... Mas há delas que dá vontade de ventilar o ambiente através da janela que se abre por cima do 16º andar. Há delas que irritam profundamente. Há delas que fazem um gajo perder a vontade de acabar de comer o bife e as batatas. Há delas que, sendo moda, não são de modas. Presentemente, a população portuguesa diverte-se com a moda do “ou não”. É “ou não” aqui, é “ou não” ali, é “ou não” se a imperial traz uma mosca afogada na espuma, enfim. Hoje está um sol estupendo. Ou não. Ena, a Catarina traz um vestido mesmo sexy. Ou não. Hum... Isabel, hoje apetecia-me partir-te os dentes com a cadeira. Ou não. Eh pá, ainda não vi aquele novo clip com a piolhosa da Sinhead. Ou não. Confesso que já enjoa. Faz lembrar o vento forte na Meia Praia, em Marrocos, quando vamos a trincar a bela da sandes de fiambre e acabamos ferrando os dentes numa espessa camada de areia que se infiltrou no pão rasca. E é moda que pega a todos. Ou quase todos. Dantes era o “e daí talvez não”, se bem me recordo. Dantes, não: sempre. Sempre foi assim. Agora, mercê da alegada crise nacional ou dos virtuosismos da bela da TV, a coisa emagreceu para “ou não”. Alguma dieta, quiçá? Não sei. Mas já era altura de pararem. Sei lá, mudar. Qualquer coisa mais viril. Por exemplo: “okay, carrega no play”. Ou “ei, já mamei”. Ou “yes, vou comer à messe”. Ou “baril, hoje é frango de caril”. Ou ainda “com’é?, partiste o pé?” pickwick
19
Mai04

Em Regime de Comodato

riverfl0w
Hoje, o meu patrão deixou abismado mais um dos seus súbditos. Neste caso uma súbdita. Uma senhora muito senhora do seu nariz, muito bem conservada para as quase certas cinquenta primaveras que já terá passado, e a qual tenho em mais alta consideração. Ainda conserva a sua beleza própria, é dotada de uma energia fabulosa e tresanda a cultura. E domina na quase perfeição a nossa língua materna. Quase! Hoje descobri que o nosso patrão a bate aos pontos. Fui apanhá-la às voltas com o dicionário de português-português, a tentar traduzir “regime de comodato” de português para português. Eu tentei logo fazer a tradução: regime em que fazemos o que achamos mais cómodo; regime do comodismo, do que dá menos trabalho; regime da cómoda, em que arrumamos as peúgas e as cuecas lavadas em gavetas; regime do como dás tu, em que tu dás mas eu quero saber como. Enfim, correu mal. O dicionário diz que é um empréstimo em que o favorecido pelo dito fica de devolver o seu a seu dono. Mais ou menos. Neste caso era um aspirador. Eu fiquei a olhar para a senhora. Que se chama Teresa e está muito bem conservada. E pensei: está aqui esta diva fora-de-prazo preocupada com uma nota do patrão a dizer que empresta um aspirador ao departamento dela mas que teria de o devolver um dia destes... coitada... foi para isto que trabalhou durante quase três décadas? Foi para isto que nasceu tão bonita e tão abonada de linhas? Ó meu Deus... que andas tu a fazer?... E porque é que deixas os patrões escreverem palavras de sete e quinhentos a mulheres destas? Fico cheio de pena de as ver assim: tão sorridentes, a consultarem dicionários. pickwick