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Arautos do Estendal

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Arautos do Estendal

30
Jul06

Doce Nostalgia #2

riverfl0w

É plausível, extremamente possível aliás, que este post não vos diga absolutamente nada. Mas há alturas em que não resisto a partilhar os meus sonhos, histórias e ambições de criança. Ambições de palmo e meio, ambições de 10 anos - inspiradas talvez em Enid Blyton, Isabel Alçada e Ana Maria Magalhães - mas sem dúvida verdadeiras.

Perseguição Total

Introdução

Depois de dois textos da Editora Relato terem sido assinados por ele, nós, Editora, apostámos definitivamente no mais recente escritor português. Quando o autor escreveu esta obra, fê-lo a pensar em si, leitor. Depois de duas obras com o mesmo título ("O Relatório" e "O Relatório II"), decidimos lançar para o mercado um texto com um novo título, "Perseguição Total", sempre com o mesmo personagem, o lendário Inspector Barrosão.

Sempre querendo o melhor para si,
Editora Relato


Tinha acabado de tocar para sair da aula de Inglês. Levantámo-nos e o professor mandou-nos sair. Neste caso, o director da escola Colégio Vasco da Gama tinha-me pedido para investigar quem andava a roubar os pneus da Carrinha H. Mal saímos da aula de Inglês, comecei a minha investigação. Para tentar detectar o ladrão em 27 alunos da turma C do 6º ano, apliquei a minha táctica de procurar os mais "santinhos" da turma para seguidamente os perseguir. A escolha foi difícil, mas consegui eleger um suspeito: "Manelinho, o santinho". Foi aí que comecei a minha perseguição do primeiro ao último segundo. Ele dirigiu-se à sua viatura, arrancando de imediato. Mas ele não perdia pela demora: chamei o meu carro telepático e instalei-me nele. O percurso até ao seu suposto esconderijo não foi longo. Seis quilómetros após a partida do referido Colégio, o suspeito parou. Saiu da viatura, de que eu previamente tinha anotado a matrícula, dirigindo-se para uma vivenda. Segui-o, naturalmente. Só quando o vi a sair da vivenda com o fato-de-banho vestido é que reparei que aquele "santinho" era mesmo "santinho". A seguir ele mergulhou nas águas transparentes da sua bela piscina, e eu deixei-o em paz. Coitado!
Depois fui para minha casa, tendo lá chegado por volta da meia-noite. Tentei dormir, mas não consegui: tinha de arranjar rapidamente um suspeito. Mudei de táctica. Desta vez, decidi suspeitar dos mauzões, porque tinha aprendido uma lição: não confiar nos ditados populares. No meu suspeito "santinho" eu tinha aplicado um ditado muito popular: "As aparências iludem". Mas desta vez não caí na mesma armadilha, e até inventei um novo ditado popular: "As aparências não iludem". Mas, com tudo isto, esqueci-me de dormir. Bem, só tenho 3 minutos para adormecer ou não durmo o suficiente. Até amanhã!

No dia seguinte, estive a procurar um mauzão na minha turma, e lá o descobri: "Tavares 009, danado para a porrada". Quando saímos da última aula, chamei logo o meu carro telepático, caso ele decidisse fugir antes de eu o poder seguir. Mal se via o meu carro telepático ao virar da esquina e ele já tinha arrancado. Não tinha tempo a perder! Tinha de o seguir!
- Comecei a minha perseguição total! - disse eu, enquanto o carro do suspeito se afastava cada vez mais. Arranquei imediatamente, na 5ª velocidade e a 285 quilómetros à hora. De repente, perdi o carro do suspeito de vista. Olhei para trás e lá estava ele! Tinha arrancado depressa demais para um novato a conduzir como ele. Então lá o segui a 40 quilómetros à hora até à casa dele. Chegámos lá eram 8 horas da noite, devido à demasiada lenta condução do suspeito. Ele saiu da viatura e mal entrou em casa foi-se deitar. Decidi dormir ao pé do último degrau das escadas que davam acesso à casa dele.
- Amanhã retomarei a investigação. - sussurei de mim para mim.
Acordei com um enorme peso na barriga. Olhei para cima e vi que ele me tinha tomado por um degrau. Era agora ou nunca. Eram ainda 5 horas da manhã e ele já tomava o percurso habitual para o Colégio. Segui-o a todo o custo, mas com alguma dificuldade devido ao sono. Chegámos ao Colégio e lá saltou ele o portão de entrada. Com os meus binóculos telepáticos, segui de perto os movimentos dele. Lá estava ele a roubar os pneus da carrinha! Fui-me embora para minha casa e dormi descansado o resto da noite.
Nos seguintes dias, "Tavares 009, danado para a porrada" ficou preso na cadeia de Caxias, e eu recebi a medalha de melhor detective do ano.

riverfl0w
26/9/96

15
Mai06

Os amigos da Meia Via

riverfl0w
Há passeios românticos, numa solarenga tarde de primavera, que facilmente se transformam em passeios nostálgicos. Por certo haverá casais de licenciados que passearão por ruas outrora calcorreadas com uma capa nojenta às costas, apontando para ali e para acolá, entre espasmos bestiais (de besta, entenda-se), recordando em voz alta as efemérides e as companhias que deram azo a cenas tristes de vómitos ao virar daquela ou de aqueloutra esquina. É uma forma de realizar um passeio nostálgico. Cada um tem a sua. Eu cá, foi mais de um saltinho à Meia Via. Para os menos sabidos e menos doutos em geografia nacional, a Meia Via é uma pacata aldeola ribatejana, banhada agora pela moderníssima A23, e alvo do malfadado progresso que assolou todo (ou quase) o país, remetendo para um outrora longínquo a paz e o sossego que faziam de nossa vida uma vida com qualidade de vida. Portanto, uma vida de qualidade. A Meia Via também devia ser assim. No passeio, recordei-me de alguns fogachos, à guisa de “felaches” e picos de acesso ao Memory Stick. Muito cansativo, digo já, ou não tivessem passado mais de três décadas sobre a última vez que estive na Meia Via. Como o tempo voa. Ou, adaptando à modernidade, o tempo agora passa a vida a andar de avião. Bom, entrado na Meia Via, o único pedaço que de lá me poderia recordar era mesmo a escola. Não que lá tivesse estudado, mas porque a minha mãezinha lá trabalhou durante um ano e eu tinha de ir com ela para lá, fazer tempo, entregue à liberdade condicionada do recreio de uma escola primária. Ao dobrar a curva, mesmo antes de bater de frente no edifício escolar, uma encosta suave fazia descida para a auto-estrada. Eu não sou muito de pesadelos, mas há que referir que tenho sorte por nunca ter tido sonhos atribulados com uma cena foleira que me aconteceu naquela encosta. Acho que foi o primeiro dá-de-frosques da minha vida, um verdadeiro brilharete dos “100 metros encosta acima”. A cena foleira deu-se numa tarde qualquer, tinha eu seis anos. Como puto que é puto a sério, e não os pedaços de carne amorfa e enjoada de que são feitas as crianças hoje em dia, não tardei enquanto não quebrei a liberdade condicionada, atravessei a estrada e abalei encosta abaixo, na ganância de explorar novos territórios de baldios, pinheiros e mata rasteira. A coisa é que correu mal, pois um cigano dos seus dez anos, que não tinha mais nada para fazer, topou-me ao longe e em pouco tempo estava também na encosta, aproximando-se de mim com um arame ferrugento nas mãos, esticando-o repetidamente e exibindo um ar sinistro e pouco amigável. Não me lembro bem, mas mandou umas bocas quaisquer sobre enrolar-me o arame ao pescoço e ah e tal. E eu, nem esperei para lhe responder educadamente que fosse à m****, até porque só umas semanas mais tarde é que devo ter aprendido a ser assim educado, vai lá saber-se com quem tive as lições. Em três tempos tinha esgalhado a encosta toda e saltava ligeiro por cima do muro da escola, provavelmente branco que nem umas ceroulas, e muito ofegante, com o coração a saltar-me pelas narinas. É fixe ser-se ameaçado com um arame e escapar. É bonito, até. Lembro que, a seguir ao muro, o conforto veio mesmo dos meus únicos amigos de então. Naquele pátio enorme aos olhos de um puto de seis anos, mas pequenino como agora pude constatar, costumava passar muito tempo com os alunos mais velhos, os da “tele-escola”, tudo acima da barreira dos 12 anos. Uns matulões, pensava eu, lá de baixo da minha minorca estatura. O “russo”, era como me chamavam, a propósito da cor do meu cabelo. Acho que só passados muitos anos é que percebi essa expressão, mas pronto, eles eram felizes assim, a chamar-me destas coisas. Fui ter com eles e fazer queixinhas. Tipo apresentação de queixa de tentativa de agressão numa esquadra da GNR, mas com a diferença que ali se obtinham efeitos práticos. Tal como eu entrei de um salto por cima do muro para dentro da escola, assim saiu um bando de matulões em direcção à encosta baldia. Não assisti a nada, mas desde aí nunca mais voltei a ter problemas com arames e tal. Só com ciganos atrás da minha bicicleta, mas isso é outra estória, noutro local. Uns gajos muito fixes, esses amigos da Meia Via. É curioso regressar a um local passados tantos anos. Especialmente pela nova perspectiva arquitectónica da coisa, pairando os olhos ao dobro da altura de antigamente. Um recreio gigantesco, agora tão mediano. Foi nesse recreio que andei “à porrada” a primeira e única vez da minha vida. Por acaso, mas só por mero acaso, foi por instigação dos meus amigos fixes da Meia Via, curiosos por verem como é que um puto pãozinho de leite com seis anos se safava embrulhado à pancada com um gandulo de dez anos, da aldeia. Lindo serviço! Mas safou-se bem, graças à boa alimentação caseira e à azelhice bilateral. Uma daquelas cenas de pancadaria muito violentas, em que os dois contendores se abraçam, espumam, gemem, rebolam, urram, fingem que matam o outro, mas não acertam uma. No fim, sobram umas caras muito vermelhas, um nariz alheio amassado com a pressão dos abraços, talvez um bocado de ranho a escolher pelas beiças, as gadelhas todas alvoraçadas, as fraldas de fora e a cabeça a andar à roda. Altamente! Teoricamente, como o outro é que teve o azar de ficar com o nariz amassado, sobrou-lhe a derrota. Eu cá não dei por nada, de tão desorientado que estava. Os meus amigos é que estavam todos contentes, que paródia! E o dia estava a correr muito bem, até chegar a minha mãezinha e prometer ajustar contas comigo em casa. Pior, foi chegar a casa e ela ajustar mesmo contas comigo! Foram tantas neste coiro que jurei para nunca mais na vida alinhar numa daquelas. Mas pronto, foi pelos amigos da Meia Via. Uns gajos fixes. pickwick
21
Set04

Generation Buraca

riverfl0w
A ouvir, na voz de João Vaz

O meu blog dava um programa de rádio - Rádio Comercial

 

Devia andar eu lá pelo 8º ano de escolaridade, na escola, obviamente, quando apanhei pela primeira vez o termo “generation gap”. Se não era assim, era qualquer coisa parecida, ou pelo menos que soava a isto. Era um texto da disciplina de inglês. A professora era feia que nem uma bruxa encardida e carregava na pronúncia inglesa ao ponto do ridículo. Na altura, o termo apanhou-me como quando uma prisão de ventre apanha uma pessoa. Hoje, volvidos alguns anitos sobre este primeiro encontro, divirto-me a relembrar as “buracas” todas que se me têm cruzado ao longo da vida. Não é fácil não entrar no jogo. Presumo que seja uma tendência natural. Tão natural como escolhermos um clube de futebol. O ser humano tem uma tendência absurda para se associar a uma facção e esfaquear o inimigo para a defender. Ou tão só para que a sua facção erga a bandeira num morro mais alto. Como em todo lado há facções, sejam clubes, partidos, sexos, licores ou tipos de roupa interior, nas idades elas também estão presentes. Tinha que ser! Os mais novos exaltam-se em críticas aos mais velhos, atribuem-lhes características ao bom estilo dos moradores dos sarcófagos, e abanam a cabeça aos seus discursos que entretanto entram por um ouvido e saem pelo outro. Os mais velhos, soltam raios e coriscos aos “putos”, riem-se da sua falta de experiência de vida, gozam com a sua hipotética falta de maturidade e não os levam a sério. Todos se esquecem, contudo, que os que já não são, já o foram, e os que ainda não são, hão-de lá chegar. Fazem lembrar o estúpido passar dos comboios na linha: umas carruagens chegam sempre primeiro à estação, mas acabam por chegar todas e pouca diferença faz quem chegou depois de quem. Urso é o passageiro que grita que chegou primeiro e palhaço o que se ri do urso. Neste circo que é a vida. pickwick
07
Set04

Mr. Pickwick

riverfl0w
Charles Dickens dispensa apresentações. É um famosíssimo escritor do século XIX. A sua primeira obra, publicada por partes, entre 1836 e 1837, chamava-se “The Posthumous Papers of the Pickwick Club”, ou, mais simplificadamente, “The Pickwick Papers”. Tinha o homem vinte e cinco anos. A obra versava sobre as aventuras e actividades do ingénuo Samuel Pickwick e dos seus amigos no “Pickwick Club”. Mr Pickwick era o fundador e presidente do clube, um antigo comerciante e cientista amador convicto. Os inseparáveis amigos incluíam Sam Weller, seu companheiro de maior confiança, o desportista Winkle, o poeta Snodgrass e o mulherengo Tracy Tupman. Foi a rampa de lançamento do sucesso de Dickens. Mais de século e meio depois, existem bares e pubs espalhados pelo mundo que recorreram a esta obra e a este personagem para darem o nome a si próprios. “Pickwick Pub”, “Pickwick Bar”, “Pickwick Cafe”, “Pickwick Restaurant”, “Pickwick Saloon”, “Pickwick Bowling” e até um verdadeiro “Pickwick Club”. No Estoril, em tempos, ali numa rua a modos que nas traseiras dos bombeiros, havia um “Pickwick Pub”. Lembro-me de passar por lá e ver a placa, muito “british”, muito século XIX. Andava eu no 8º ano. E enfim, agora que se esgotou o passeio pela cultura e pela rede de restauração e consumo de bebidas alcoólicas, acho que está na hora de revelar a verdadeira e humilhante origem deste pseudónimo com que assino as barbaridades que por aqui se escrevem. A culpa é de uma miúda. Só podia ser. Chamava-se Rita e fiquei perdido de amores por ela mal entrou para a minha escola e a topei. Estava numa turma um ano atrás de mim, mas era da minha altura. Reconheço que não era assim muito bem feita, mas o amor tem destas coisas misteriosas. Foi paixão para durar um ano inteiro. Mais precisamente até às férias do verão. Corria o boato na escola que namorávamos, mas não passava mesmo de um boato. Faltava só mesmo eu declarar-me e espetar-lhe um beijo naqueles lábios muito carnudos. Ora, como eu não era capaz de me decidir qual das duas tarefas era a mais difícil, andei a engonhar o tempo todo, até ao verão. Até ela achar que eu não gostava de gajas, talvez, ou dela, e se fartar de esperar. Ou seja, grande tanso! Enfim, seja como for que foi, esta miúda marcou de alguma forma a minha adolescência inicial. Era uma miúda porreira, muito simpática, muito querida, muito atenciosa. Não é que falássemos muito, que vivêssemos juntos aventuras, mas quem sabe o que é o amor platónico correspondido, sabe do que falo. Aqui há cerca de uns 4 anos cruzei-me com ela num centro comercial em Oeiras. Era ela de certeza. Reconheceu-me ao longe. Já tinham passado quase duas décadas, mas o olhar foi exactamente o mesmo que nos corredores da escola, as sobrancelhas carregadas, olhar penetrante. Por momentos senti-me tentado a ir ter com ela, mas o namorado ou marido estava junto e podia não achar muita piada. Além do mais, eu estava trajado com o mais reles fato de treino que se possa imaginar, ténis rotos, sujo de andar a mexer em teias de aranha, folhas de bananeira e caixotes cheios de pó. Foi bom vê-la. Não matou a saudade, porque não havia, mas satisfez alguma curiosidade adormecida. Chamava-se Rita e era uma miúda porreira. Se calhar já disse isto. Bom, a Rita, que era uma miúda fixe de quem eu gostava muito, desde o início do ano que me chamava Pickwick. A moda pegou e muita malta não sabia o meu nome. Apenas me tratavam por Pickwick. Até era giro. As amigas dela, então, achavam uma graça imensa. Ficava bem, achava eu. A alcunha ainda a usei durante muitos anos, até mesmo depois de já poder votar. A primeira vez que passei pelo tal bar, fiquei a saber de onde vinha o nome Pickwick. Não percebi muito bem porquê, o que é que eu tinha a ver, mas o amor tem destas coisas. Pensava eu. Ingénuo!!!... Bom, não sei se já disse, mas a miúda chamava-se Rita e eu gostava muito dela. Era muito simpática. Eu engraçava com ela. Certo dia, lá mais para o final do ano, trouxe para a escola uma fotografia do cão dela, para me mostrar. Era um “salsicha”, daqueles “rodinhas-baixas” mal jeitosos com pernas de rã e focinho de canudo com orelhas abelhudas ao pendurão. Fiz um sorriso condescendente, para ela ficar feliz, mas a verdade é que aquele tipo de cão não devia existir. Claro que não lhe disse isso, ou lá se ia o amor platónico pelos ares. Ela ficou satisfeita com o meu sorriso e virou a fotografia para que eu soubesse o nome daquele animal feioso que lhe nutria tanta ternura. Foi o choque do ano! Sim! Era este mesmo: pickwick.
06
Set04

Inconsciências 4

riverfl0w
Onze anos. Sim, outra vez. Não tenho culpa e não é de propósito. O tema de hoje é tabaco. Sim, esse vício horrendo. Foi o ano da primeira experiência. Tenho algumas dúvidas sobre qual foi a marca, mas terá sido algo entre o viril SG Ventil com sabor a sapato usado e o discreto Kentucky tido como o mais eficaz mata ratos da época. Aconteceu quando descobrimos que havia monte de gente a chuchar cigarros. Não é que ainda não soubéssemos, mas nesse ano “descobrimos” isso. E, tal como quem descobre um novo restaurante, há que ir lá meter o nariz. Ou, neste caso, os beiços. Ainda foi uma coisa polémica. Quem iria experimentar, quem iria comprar, que desculpa se daria para a compra, e onde iríamos acender aquilo para ver o efeito. Se alguns comparsas houve que se desmarcaram logo à partida, outros não se fizeram muito rogados. O grupinho de “corajosos” lá se definiu, alguém com um ar angélico foi ao café comprar um maço para o pai, e lá rumámos todos para um canavial ali mesmo à beira da 2ª Circular. Outro dia passei por lá a caminho do aeroporto e o canavial ainda sobrevive, um quarto de século depois, provavelmente à espera de mais experimentadores. A experiência em si não teve nada de especial. Ninguém explodiu, ninguém morreu, tudo numa boa, ai de quem se atrevesse a comentar o sabor fedorento que ficava na boca. A farra só começou quando, sugestionados por um outro amigo qualquer, entrámos na fase de travar o fumo. Entre os enjoos e os vómitos sucessivos, não consigo esquecer as cabeçadas que dei nas latrinas, de tantas tonturas que tinha que nem me conseguia equilibrar. Mas, a malta teimava sempre em repetir a dose. Sem explicação. A pirosice atingiu o seu auge quando começámos a andar com um maço num bolso e no outro uns óculos escuros espelhados ao pendurão. Foi, sem dúvidas, a época da minha vida em que consumi mais pasta de dentes. Para além das vezes sem conta em que usava a escova, recorríamos frequentemente aos nacos de pasta que eram atirados para dentro da boca com o auxílio da ponta do dedo, mascados de seguida como se fosse a mais bela e saborosa pastilha elástica. Tudo para disfarçar o hálito, claro. Em poucas semanas já fazíamos truques e malabarismos. Já só com uns meros 8mm de cigarro para consumir, entalávamo-lo entre a língua e o beiço inferior, fechando a boca com o cigarro lá dentro a arder. Voltávamos a abrir a boca e aí vinha ele, a largar fumo, pronto para levar mais uma passas. Muito “macho-man”, decididamente. E nem o isqueiro escapava. Como se não bastasse o já batido truque de deitar o gás para dentro de uma mão fechada para depois lhe chegar o fogo e a mão se abrir numa labareda fantástica, tivemos de treinar o mesmo com a boca, como no circo. Às custas disso, certa vez ainda queimei umas pestanas, ao soprar a língua de fogo contra uma parede. Foram muitos meses, nisto. Até ao dia em que o meu melhor amigo teve uma conversinha comigo. Ele fora dos que se metera de lado quando começámos com as experiências. O tema da conversinha era o efeito do tabaco nas prestações físicas. Não éramos putos bem informados, claro, mas contra factos não há argumentos. Até termos começado nisto, fazia parte de um grupinho de alunos bem acima da média em desporto. Éramos os melhores nesta ou naquela modalidade, detendo recordes aqui e além. Foi por aí que ele pegou, precisamente. Ainda não me tinha dado conta disso, mas o recorde de onze elevações na barra que eu dantes fazia sem me chatear muito, contrastava com as reles sete elevações que agora me borrava todo para conseguir fazer. Era um facto, e não valia a pena procurar outras explicações que não o tabaco. Estava mesmo ali, na cara. Foi remédio santo e acabou-se o vício de um momento para o outro. Este amigo morreu aos vinte e poucos anos, vítima de um problema no coração, mas a ele lhe agradeço a lição de vida. Obrigado, 476. pickwick
04
Set04

Inconsciências 3

riverfl0w
Pornografia. E sexo. É o tema deste post. Algum dia tinha de ser. Começo com uma estória. Era uma vez, claro, um bando de cerca de uma dezena de putos de onze anos. Caía a noite, mas, ali, naquele caminho alcatroado e ladeado por árvores frondosas, a noite caía ainda mais depressa. Era a subida para o ginásio da escola, onde ao final do dia vinham treinar atletas de outras escolas e não só. O bando aguardava do lado esquerdo para quem sobe, escondidos por montes de terra e arbustos. Ninguém sabia ao certo o que estavam ali a fazer, mas estava a ser divertidíssimo. Nisto, vislumbra-se por entre as sombras um vulto. Era uma mulher dos seus vinte anos, saco desportivo a tiracolo e passadas enérgicas. Alguém no bando descobriu o que poderia ser feito. “Vamos violá-la”, exclamou. A ideia foi recebida com bocas abertas de espanto e sobrolhos franzidos, num sinal evidente de apoio inequívoco. “Quando eu disser, saltamos para cima dela”, era o plano. Os corpos franzinos dos putos retesaram-se naquela posição de salto, impacientes pela ordem final. A mulher passou por eles e, quando já só os via pela nuca, soou o “já!” tão esperado. Foi só o tempo de darem dois ou três passos, alguns nem tanto pois escorregaram desastradamente na terra solta, e ouviu-se a poucas dezenas de metros um apito estridente. Aquela zona era vigiada, sabiam, mas escusavam de apitar numa altura destas. Tomados de pânico, o bando dispersou descontroladamente por todos os lados onde havia um arbusto e muita escuridão. Lá se foi a violação, e a mulher nem chegou a aperceber-se de nada. Mas, “vamos violá-la”??? Do que raio eu me havia de lembrar!... Eu nem sabia o que isso era. Nem eu, nem o resto do bando. Éramos putos, mal informados e completamente estouvados. Devia ter ouvido aquele verbo algures, associado a qualquer coisa que se faz a uma mulher, provavelmente sem roupa. Ainda bem que não chegámos a vias de facto, pois, para além de não sabermos o que fazer, se chegássemos perto dela, o mais provável era sermos corridos ao estalo e ao pontapé, situação que decerto nos traumatizaria para o resto da vida. Foi um ano de descobertas, este. Falava-se muito na Camisa de Vénus, ou Camisinha, para os amigos, mas acho que só no ano seguinte descobri que afinal esta camisa não era a camisa branca vestida pelos nossos colegas mais velhos nas aulas de equitação, de uso obrigatório. Um dos meus colegas, magrinho e com ar lunático, repetente, era o ídolo de alguns pela proeza de conseguir masturbar-se no meio de uma aula de inglês com o professor Walter, esse metro e noventa de peso, fato e lenço no pescoço, com umas mãos maiores que qualquer uma das nossas cabeças. Chamava-lhe àquilo uma … (petisco nacional à base de bacalhau cru desfiado). Mais um nome para a nossa colecção. Circulavam as revistas pornográficas. Às custas delas, sempre que ouço o nome Gina, não consigo contornar a memória. Algumas páginas soltas tornavam-se mesmo num mistério, pois os grandes planos dificultavam a orientação vertical da página. Para além de nos parecerem um bocado nojentas, ficava-nos sempre mal virar e revirar aquilo com um ar de ignorância total. Um dos alunos mais velhos, já nos seus dezassete anos, era frequentador semanal dos serviços das meretrizes da Avenida da Liberdade. Facilmente se tornou o nosso ídolo, reunindo-nos horas a fio à sua volta enquanto contava as aventuras. Tinha predilecção por uma delas, com quem mantinha um relacionamento mais carinhoso, e a quem levava queijo e outros petiscos quase todas as semanas. Nós andávamos fascinados com aquilo tudo, com tantas novidades. Certo dia, o nosso ídolo deixou de aparecer nas aulas durante umas semanas. Mais tarde, voltou às aulas. Não era o mesmo. Vinha de muletas e mal conseguia esboçar um arremesso de sorriso, bem aquém de antigamente. Reunimo-nos à volta dele, curiosos. Teria levado uma sova do chulo da outra? Atropelado? Ele explicou. Nesses minutos seguintes, tive a melhor e mais eficaz lição sobre prevenção de doenças venéreas de toda a minha vida, num gesto de humildade que me marcou para sempre. pickwick
29
Ago04

Inconsciências 1

riverfl0w
Hoje acordei a pensar na vida. É um bom dia para o fazer, é Agosto, está nevoeiro, dói-me a planta do pé esquerdo, enfim. Mas não pensei na vida toda. Apenas naqueles episódios em que nos elevamos acima da razoabilidade e do bom senso, arriscando ora o físico, ora a reputação. Episódios de que só tomamos consciência séria passados dias, semanas, meses ou mesmo anos. Quando tomamos. Porque há deles que, provavelmente, nunca nos apercebemos. O primeiro que me vem à cabeça passou-se há muitos anos, tinha eu as minhas onze primaveras. Andava numa escola na bela capital portuguesa e o meu grupinho de amigos não primava pelas actividades cívicas. Aliás, atirar pedras às janelas e tocar à mão cheia nas campainhas dos prédios até chegou a ser moda. Certo dia, lembrámo-nos de ir ao Jardim Zoológico. Os animais fascinam qualquer puto que se preze e nós não éramos excepção. E o fascínio subiu de tom quando demos de caras com a secção dos felinos, aquela fila de jaulas com leões, tigres, pumas e leopardos. Uma das jaulas tinha um majestoso leão, de juba enorme, já entrado na idade, indubitavelmente o rei daquele zoo. Até aqui tudo bem. Com a maior naturalidade, saltámos o gradeamento de segurança que mantém os visitantes a uns dois metros das barras da jaula, protegendo-os de alguma patada mais carinhosa. Isto não se faz, como é óbvio. Como se não bastasse, estávamos mesmo em frente à jaula do tal leão que, na maior das calmas, tinha o corpanzil encostado às barras e batia uma soneca. Ora, provavelmente não se deve incomodar um leão enquanto dorme a sesta, mas… não sei o que me passou pela cabeça, que não resisti a puxar-lhe o rabo. Isto é que não se faz mesmo! O bicho, estranhamente pouco incomodado, virou-se para a malta e abriu aquelas fabulosas mandíbulas num rugido mal cheiroso e impressionante, capaz de engolir-nos a todos de uma só vez. Bom, sei que ia partindo uma das canelas no gradeamento e que só parámos de correr quando chegámos ao outro lado do zoo. A mim, quase que me estoirava a cabeça, tal era o susto, e ainda levou uns bons minutos até estabilizar o batimento do coração. Ainda assim, voltámos às jaulas e saltámos novamente o gradeamento. Eu já estava um bocado apreensivo com a brincadeira toda, mas um dos meus amigos ainda queria provar mais um bocadinho de adrenalina. Por isso, foi à jaula dos pumas e estragou-lhes o descanso com um soco no lombo de um deles, pondo aquilo tudo em alvoroço, com os animais a rugirem e aos pulos feitos loucos. Escapou-se a tempo, porque os bichos em três tempos tinham as garras à mostra e esticavam as patas em movimentos frenéticos do lado de fora da jaula a ver se nos atingiam. Mas o dia não acabou aqui. Este bando de putos ainda fez mais umas visitas, embora menos estressantes. Lembro-me, como se fosse hoje, de me estarem a segurar pelos braços, eu à procura do chão, largarem-me, virar-me, e, lá ao fundo, a uns 50 metros, um gigantesco rinoceronte rodopiar na minha direcção. Um joelho esmurrado na parede e os mesmos braços a içarem-me à pressa para fora. Mais além, recordo-me de caminharmos agarrados a um gradeamento, em cima de um muro, até chegarmos ao lado de um hipopótamo imerso no tanque fedorento, e vermos quem conseguia meter-se em cima do animal, sem cair. Isto também não se faz, ok? Esse ano foi muito frutífero em disparates e inconsciências. A malta, ainda por cima, parece que não aprendia. pickwick
18
Jul04

Doce Nostalgia

riverfl0w

Estava à procura de umas coisas de Matemática nos arquivos mais antigos. Não encontrei o que queria, mas encontrei uma pasta castanha, A4, um pouco comida pelo tempo. Cá fora estava escrito: A minha primeira composição.

"Lisboa, 29 de Maio de 1992

Eu vou passiar ao parque.
O Fernando vai fazer uma corrida de cavalos.
O cavalo do Luís passou para o quarto lugar.
Mas veio o André a galopar no seu cavalo e passou o Luís.
O António vai a passar, vê aquilo e fica de bouca aberta.
O Jorge que viu as corridas riu muito até ficar careca."

A vida era simples, bela. riverfl0w

14
Jun04

Regresso

riverfl0w
Hoje peguei na mochila e fui à escola. Cumprimentou-se o funcionário coxo, piscou-se o olho às continas, como habitual. Reviram-se amigos, apertaram-se vigorosamente as mãos e encostaram-se os lábios às faces das meninas. Mas giro mesmo foi quando me puseram uma folha pautada à frente, contra apresenção do BI. Aí sim, revivem-se velhos momentos... Hoje dissertei audaciosamente sobre a ironia implícita de Sttau Monteiro, a insegurança política de D. Miguel Forjaz, o regresso de D.Sebastião no seu cavalo branco e a utopia pessoana do 5º Império. Audaciosamente, sim, porque não são todos os que têm coragem de falar do que sabem e do que não sabem. Agora resta esperar que os correctores da prova sejam tão pouco inteligentes como D. Miguel foi quando mandou queimar o Gomes Freire.
Amanhã vou falar de vales, rios, montanhas, pescadores, artífices, guias turísticos, cabelos grisalhos e o efeito do Euro 2004 nas migrações pendulares. Wish me luck! riverfl0w
04
Jun04

É na boa

riverfl0w
A ouvir, na voz de João Vaz

O meu blog dava um programa de rádio - Rádio Comercial

 

Vim agora de um teatro. Ao meio-dia é uma boa hora para vir de um teatro. E, sendo meio-dia, a probabilidade de ter sido um teatro de temática erótica é reduzidíssima. Mas não nula. E não foi. O tema era ambiente. Acho eu. Não percebi muito bem. Foi tudo tão rápido que nem cheguei a entrar na onda. Mas tinha árvores e rios e uma “fumarola” e um monstro da poluição e mais não sei o quê, acho que um gato e um rato, o gato era o apresentador e falava "axim” e o rato escondeu-se atrás de uma árvore ou de um girassol, que também não percebi bem o que era. Era um teatro infantil. Infantil no sentido em que os actores eram criancinhas. Acho que indivíduos entre os 10 e os 12 anos ainda podem ser chamados criancinhas. Espero que sim. Alguns bastante talentosos, ao ponto de eu ficar pasmado. A mensagem da peça também não entendi muito bem. Pouco antes do almoço as coisas do mundo tornam-se menos perceptíveis. É normal. A assistência também não sei se captou bem a mensagem, se é que havia uma. Reparei que vibraram electricamente quando o rio, as árvores e mais não sei quem, atiraram o monstro da poluição ao chão e lhe chegaram a roupa ao pêlo. Na assistência já havia gente de pé com os olhos a saltarem fora das covas, completamente absorvidos pela cena de pancadaria. Até podia ser a Madre Teresa de Calcutá a vítima, que não interessaria. Pancada é pancada! Mas foi o monstro a vítima, atrozmente espancado até à morte. Explodiram as palmas de entusiasmo. Alegria. Júbilo. Felicidade. Ehhh!... Vitória!... Enfim. Não pude deixar de reparar na forma atabalhoada como o show foi apresentado. Por certo que houve ensaios, mas ainda mais certo foi terem sido ensaios-repartidos. Como as férias. Ensaio do conjunto, incluindo actores, música e projecção de imagens, isso é que nunca se fez. Bastou ver as atribulações da execução: era o micro sem fios que ninguém se lembrou de ligar, era o ruído no som, eram as músicas nos tempos errados, eram as imagens trocadas, eram os gestos de correcção de tudo e mais alguma coisa, enfim, uma vergonha. Mas... é na boa. As criancinhas, que daqui por 20 anos estarão no mercado de trabalho liderando e sendo liderados, produzindo e gozando, habituam-se desde pequeninas a participar em processos conduzidos em cima do joelho, sem cuidados mínimos de exigência, com falhas facilmente evitáveis com um pouco mais de preparação e ensaio, terminando sempre, mas sempre!, com aquele ar generalizado de que “é na boa”. Os mais velhos exibem esse ar, e eles seguem-lhes as pegadas. Se a ponte cair, é na boa. Se a máquina falhar, é na boa. Se faltar alguma coisa, é na boa. Se correr mal, é na boa. Se levassem com um cacto vistoso entre as nádegas cada vez que pensam assim, a ver se não entrava tudo nos eixos. Vota lista C. “C” de cacto. pickwick