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Arautos do Estendal

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Arautos do Estendal

17
Jul08

A saga das maminhas – parte 3

pickwick

Já falei da menina de Burgães com madeixas loiras, que encontrámos na Drave? Já? Pronto! Não se fala mais nisso!

 
Bom, depois de vencermos – a muito custo – a vontade de ficarmos a dormir pela Drave, apesar de ainda nem ter chegado a hora do lanche, lá seguimos ribeira abaixo, como quem aponta em linhas curvas em direcção a Covêlo do Paivó, com passagem ao lado de Regoufe. Sempre pela ribeira.
 
É muito giro, devo confessar. O leito da ribeira é coberto por calhaus sem arestas, macios e arredondados. Aqui e além, com bastante frequência, as águas afundam-se nos calhaus do leito e desaparecem de vista, deixando o “caminho” completamente seco. De vez em quando, carvalhos e castanheiros seculares lançam sombras enormes sobre a ribeira. Ao longo dos séculos, os habitantes da região construíram bastantes represas na ribeira, espaçadas entre si de dezenas ou centenas de metros, que nos surgiram como pequenos obstáculos à saudável caminhada.
 
Por vezes, a ribeira ficava tão apertada entre os penhascos nas margens, que pouco ou nenhum espaço sobrava para se caminhar, obrigando a manobras sofisticadas, usando apuradas técnicas de escalada lateral, equilibrismo sobre calhaus, proezas de salto em comprimento, e banhos ocasionais. Cansativo, digo já. Muito cansativo! Se alguns insistiam em trocar de calçado a cada cem metros, alternando entre botas de montanha para saltitar entre calhaus e sandálias de praia para entrar pela ribeira dentro, outros cedo se cansaram desses tiques pouco másculos e transformaram as suas botas de montanha em veículos anfíbios, ensopadas por fora, ensopadas por dentro. E também havia um par de sapatilhas com amortecedores de calcanhar que boiavam sobre as águas, desde que não estivessem a ser calçadas pelo dono. Alguém alvitrou que foi com estas sapatilhas que Jesus caminhou um dia sobre as águas, mas pareceu-me mais propaganda barata do que um facto histórico.
 
Algures, as tropas pararam numa irresistível piscina natural, onde as águas eram tão límpidas que se via com clareza o fundo a quatro metros de profundidade. Apesar da clareza, o tom da água era de um azul delicioso. Daquelas coisas que só quem se aventura por terras de ninguém tem a oportunidade de encontrar. Pausa para mergulhos e braçadas, ora para a frente, ora para trás. Bem, não foram assim tantas as braçadas, porque o sol decidiu dar uma curva e a água de montanha não é assim um caldo de temperatura tão agradável como numa praia conspurcada do Algarve. Mas deu para saborear.
 
Centenas de metros mais à frente, a paisagem mudou ligeiramente e encontrámos uma quinta abandonada. No meio de nenhures, portanto. Habitações de xisto, carroça de madeira, socalcos, portões toscos e gigantescos castanheiros, tudo na encosta de um monte. Depois da voltinha de reconhecimento, voltámos à margem da ribeira – por esta altura, já podemos chamar-lhe rio, não? – para escolhermos um local para passar a noite, que os estômagos já reclamavam o apetecido jantar.
 
Sorte! Um terreno cheio de erva fofa, com sobreiros, a três metros do rio, num plano perfeitamente horizontal. Com um toldo de plástico, montámos um agradável abrigo para a humidade nocturna, usando, para a estrutura e estacas, madeira seca das árvores. Ficou um mimo, com aquele ar acolhedor que tanto agrada a quem está estafadinho e desejoso de uma noite bem dormida.
 
Em três tempos, já a noite a cair, começou o banquete. Chouriça assada e queijo foram os principais conteúdos, sendo de realçar o néctar escuro e perfumado que regou o jantar, na base de uma garrafa por pessoa – ah e tal, estava calor. Para a sobremesa, um petisco de fazer estalar a língua: painho de porco preto e queijo de Nisa! Acho que houve mais qualquer coisa na mesa, mas o néctar afectou-me a capacidade de memorizar géneros alimentícios, pelo que a ementa aqui descrita pode pecar por defeito.
 
Depois ah e tal, não me lembro se alguém caiu ao rio, ou se fomos atacados por algum crocodilo, ou atropelados por um javali desesperado, ou outra coisa qualquer. É o que se chama um “lapso de memória por ingestão de néctar”. Lembro-me, muito vagamente, de acordar a meio da noite, sob um lindo manto de estrelas, e reparar que um dos membros do grupo roncava ruidosamente a dois metros do abrigo, de papo para o ar – como já é habito nestas situações. Uma noite em beleza, portanto. pickwick