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Arautos do Estendal

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Arautos do Estendal

04
Mar14

Second chance date

pickwick

Comecemos pela “first chance date”, algures no início de Fevereiro, poucas horas depois de regressar de uma noite passada na Serra da Estrela dentro de uma tenda, enquanto se abatia sobre Portugal a tempestade Estefânia. Foi na mesa de um cafezinho simpático, a bebericar qualquer coisa quente, a ver fotos num computador e a dar dois dedos de conversa. A loirinha não tirou o casaco-contra-tempestades, porque estava a nevar dentro do café e a queda de um pinheiro de grandes dimensões já tinha escavacado a caixa registadora. Ainda assim, entre um piscar de olhos e meia dentada numa Bola de Berlin imaginária, consegui tirar umas quantas medidas estratégicas ao vestido meio-azul-e-coiso que se escondia debaixo do casaco. Isto é como tirar medidas à unha de um elefante: não é preciso ver o elefante todo para perceber, pela unha, que não se trata de uma minhoca.


Entretanto, o tempo antena terminou, demasiado abruptamente. A loirinha saiu a correr porta fora, eu ainda fui atrás dela, mas veio a Estefânia e levou-lhe o guarda-chuva e uma saca com pão e mais a ela e dois arbustos. Eu só tive tempo de deslizar pela rampa abaixo, entrar de cabeça no carro e zarpar dali para fora, não fosse o céu desabar de uma vez só e estragar-me os piscas do carro.


Apesar da velocidade alucinante a que se passaram os anteriores acontecimentos, forçei-me a estacar corpo e mente por uns segundos, agarrado ao volante, só para que, do fundo das entranhas, saísse um “uau!...”, algo a meio caminho entre a estupefação e as beiças caídas.


Bom, passado quase um mês, surgiu inesperadamente uma nova oportunidade para estar com a loirinha. Sem tempestades com nomes de gajas santificadas, sem sacas de pão, sem correrias. Ontem, mais propriamente.


À hora marcada, e porque não se fazem esperar princesas, plantei-me à porta do prédio dela, dentro do carro, tentando ver qualquer coisa para além do metro e meio por entre as pingas de chuva que tombavam na chaparia automóvel. Fiz-me anunciar por SMS, na falta de clarins e tambores. Ao fim de quase quarenta SMS’s com troca de referências geográficas, consegui perceber que a loirinha, afinal, estava no carro dela, poucos metros mais à frente, com os mínimos ligados quase a ofuscarem-me os binóculos. Ela podia meter um pirilampo dos bombeiros no tejadilho para me chamar a atenção e poupar SMS’s? Podia, mas depois arriscava-se a ter os gatos todos da vizinhança a miarem-lhe e a fazerem-lhe xixi nas rodas. Mais quinze SMS’s e acertámos que eu me transladava para o veículo dela, deixando o meu ao abandono e sujeito a ser vandalizado pelos cães dos vizinhos que também fazem xixi nas rodas.


Em câmara lentíssima, fechei a porta e cumprimentei-a com dois beijinhos nas bochechas, daqueles que se desejava demorarem uma eternidade, ao invés das milionésimas de segundo que a cruel realidade me permitiu. Apertei o cinto e, perante um painel de instrumentos aeronáuticos capaz de envergonhar um Airbus A350, temi pelo pior: a loirinha pressiona um dos milhares de botões iluminados, o motor dá duas bufas, saem asas muito aerodinâmicas debaixo das portas, as jantes das rodas transformam-se em hélices e saímos por aí, pelos céus afora, trespassando nuvens e serpenteando por entre flocos de neve… Felizmente, ou infelizmente, ela engatou a primeira e fomos directos para o restaurante, conforme combinado, deslizando muito conservadoramente pelas estradas de alcatrão.


A loirinha, que nos tempos livres poderia desempenhar papéis em filmes de cowboys italianos, escolheu uma mesa posicionada a jeito de sacar do seu Colt Peacemaker 45 e com três nacos de chumbo quente estragar a dentadura ao primeiro atrevido que entrasse e arreganhasse as beiças. Eu sentei-me do outro lado da mesa, quase a dois quilómetros.


Depois ela tirou o casaco e eu agarrei no telemóvel com as minhas mãos trémulas, prontinho para chamar o INEM assim que a minha imediata taquicardia passasse a perigosa fasquia dos 300 batimentos por minuto. Porque, entre o casaco e a pele, a loirinha tinha trazido um vestido coiso-e-meio-azul, justinho ao corpo, a terminar o tecido 3/4 de palmo acima do joelho. Pareceu-me reconhecer o vestido de há quase um mês atrás, mas, sinceramente, bem que o pode trazer novamente num próximo encontro, e nos seguintes, se Deus for grande e os houver, que eu só tenho a agradecer. O meu coração é que se queixa um bocadinho, mas dou-lhe meio bife de picanha crua para se acalmar e pronto.


Nisto, descubro-lhe um piercing em jeito de diamante, cravado nas goelas. Pensei logo: Ai! Ó mulher de Deus! Que foste fazer? Isso não te prende a comida a descer pelo esófago? E não cria ferrugem quando bebes água? É nestas ocasiões que o silêncio vale ouro. Antes de fazer estas perguntas idiotas, fiz uma pausa silenciosa, inspecionei melhor o assunto e percebi que, afinal, não era um piercing, mas um singelo colar com um brilhante. E safei-me de levar dois pares de estalos e ficar mal visto.


Bem, entretanto, veio o momento de escolher a ementa. Ela tinha-me confidenciado que gostava muito de comer, e que, efectivamente, comia muito, pelo que achei que nem valia a pena abrir a carta com as ementas e podia partir logo para o disparate, pedindo uma vitela inteira cortada às postas, um saco de 40 kg de batatas assadas e dois litros de natas para pincelar a carne. Mais uma vez, uns segundos de pausa silenciosa antes de abrir a boca, e safei-me de boa: ela anunciou que preferia peixinho. E pedimos arroz de tamboril com gambas.


As duas horas seguintes foram de pura tortura! Duas horas a arreganhar a toalha da mesa com as unhas, para chegar mais perto dela ou a trazê-la mais para perto de mim… sem sucesso! Duas horas a controlar um impulso insano de saltar por cima da mesa e enchê-la de beijos, equilibrando-me com um joelho dentro da terrina do arroz de tamboril e o outro em cima de um caroço de azeitona perdido. Duas horas a evitar uivar para o teto da sala, escondendo na linguagem do uivo todos os elogios àquele corpo que me estava a matar de deslumbramento. Duas horas a tentar adivinhar qual seria o aroma daquele pescoço fofinho que se erguia acima do vestido. Duas horas completamente nas nuvens. Enfim.


Depois chegou a hora, ela levou-me de volta ao meu carro de jantes lavadas do xixi dos cães com a água da chuva, a despedida com dois beijinhos-relâmpago naquelas bochechas de pele-rabo-de-bebé, e lá fui eu… a arfar… a tentar discernir se aquele jantar tinha mesmo acontecido, se a loirinha era mesmo aquela loirinha de há minutos atrás, que quase ainda sentia o gosto da pele dela nos meus lábios, se… coiso… Há dias em que um gajo fica mesmo desorientado de todo. Este, terminou assim. pickwick
 

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