Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.
Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.
Não saber, é do piorio. Há males que doem, há fomes que fazem sofrer, há dores na bexiga que até fazem uivar. Mas, ó pá!, viver na ignorância bate todas aquelas. Não falo da ignorância permanente, daquela que leva o cidadão comum obcecado com a telenovela e/ou o presunto da Marisa Cruz (esta ainda existe?) a não saber quem escreveu o Dom Kichote delá Manga ou o que querem dizer as siglas URSS. Não sabe, mas não tem problema. Às oito horas é o jantar e o resto é conversa. Há outro tipo de ignorância que essa sim tem efeitos complicados na nossa multiplexada vida. É uma ignorância que se prende com acontecimentos voláteis. É uma ignorância que não escolhe padrões, idade, sexo, cultura. Não discrimina, portanto. Não perdoa. Não nos deixa em paz. Aflige. Tortura. É do piorio! Faz-nos a vida negra (ou apenas escura, para os mais optimistas e sorridentes) e senta-se a ver o espectáculo. A sua forma mais simplificada, assim em jeito de átomo pérfido, dá sinal de vida momentos antes de uma qualquer refeição surpresa. Por refeição surpresa entenda-se aquela que vamos tomar mas não sabemos o que vai ser. Confesso que por vezes sofro muito com este tipo de ignorância. Vou jantar a casa de uns amigos e, contrariando o esplendor que seria um belo lombo de porco assado, sou presenteado com uma travessa de bacalhau com natas. Na viagem revolvo a memória em busca de indícios que me permitam adivinhar a ementa, mas a resposta é a ignorância em si. Depois, para finalizar a agonia, levo mesmo com o bacalhau com natas. Há quem goste, mas para mim é o mesmo que comer vomitado de rato temperado com fermento. O fermento é para fazer aumentar e encher a travessa toda. Depois vêm ignorâncias menos carnais. Ou mais. Depende do astral e da velocidade do vento. Quando não se sabe porque é que aquela miúda jeitosíssima foi tão simpática será que?... ou não tem nada a ver?... Aquela mãozinha passada no lombo, aquele olhar de sorriso rasgado, aquele sorriso de olhar ofuscante, aquele atenção tão atenciosa, aquele piropo tímido, outro piropo mais atrevido disfarçado pela brincadeira, eu sei lá Um mundo é tão cruel quando nos deixa na dolorosa solidão da ignorância. Por fim, há a rainha das ignorâncias! Manifestou-se ainda há minutos atrás, bombardeando os ouvidos da minha consciência com a sua sádica gargalhada. Foi na rádio: o jackpot do loto 2 vai para 1,2 milhões de euros e os números premiados na próxima segunda-feira serão?... Ai!... Como eu sofro!... pickwick
Caríssima Hermione: as tuas palavras acabaram de descer às profundezas do meu coração. Tu sabes do que falo. Tu compreendes-me. Tu deves ser uma boa rapariga. Tu fazes sortudos os que são premiados com a tua amizade. No entanto, por favor, não insistas mais. Depois de ler o que escreveste, quase não tenho motivos para continuar na escuridão da ignorância. Não insistas mais... posso não resistir mais e lá se vai uma amizade quando ela explodir na desilusão da certeza de que afinal essa amizade não era retribuída da mesma forma, com o mesmo sentimento...
"Não saber é do piorio". Concordo. Mas, sem pretender ser demasiado masoquista, é também uma dor ansiada, uma doce crueldade, um suave sofrimento, uma relaxante aflição, uma gratificante tortura e um desejado martírio... E isto porque, quando verdadeiramente nos interessamos por saber algo, vamos em frente até descobrir... Alguma coisa a perder? Não sei, apesar de dizermos que "o não está sempre garantido", todos temos dúvidas quanto a isso. No entanto, um verdadeiro espírito de investigação pergunta o que vai ser a refeição... arrisca e joga no Loto... tenta junto da miúda...