Isto da Páscoa tem destas coisas: a nostalgia atiça o relato de estórias inéditas na família.
Cena passada lá para o tempo da senhora das ceroulas, com o meu paizinho na quota dos oito aninhos.
A minha avozinha, na sua imparável missão evangelizadora, coadjuvada pelas minhas tias-avós beatas, explica ao meu paizinho a existência do Diabo. A maldade, blá blá blá. O meu paizinho questiona, na sua inocência, porque motivo não limpam o sarampo ao Diabo, e assim se resolvam todos os males do mundo. Ah e tal, ninguém consegue matar o Diabo, é impossível. Ou seja, para além de nunca ter sido visto, é impossível matá-lo. A história não cai bem à criança, que acaba por levar uma lavagem ao cérebro, mas que, apesar disso, ainda acha que, se o Diabo existe, deve haver uma forma de o mandar desta para melhor. Enfim. Junto com a estória do Diabo, muitas outras vieram, ao ponto de o meu paizinho se ter transformado num incrédulo quanto às questões de fé.
Um belo dia, as senhoras tentam mais uma estratégia inovadora para convencer o meu paizinho sobre o universo misterioso das coisas de fé. Batem à porta e as minhas tias-avós vão atender. Quem era? O Diabo, vinha trajado de vermelho, com chifres e rabo larilas, tal e qual as descrições exaustivas que tinham feito ao meu paizinho. Não querendo parecer grosseiras, as minhas tias convidam o Diabo a ir até à cozinha, para dar dois dedos de conversa, com a óbvia presença do meu paizinho. Ah e tal, estás a ver? É ou não tal e qual como te contámos. Bom, o Diabo e as duas senhoras puseram-se a botar faladura, ah e tal para aqui, ah e tal para ali, perante o silêncio do meu paizinho, que estava todo borradinho de medo perante a presença física do autor de todos os males do mundo, com chifres e tudo.
Acontece que o meu paizinho sempre teve um feitio pouco dado a contemplações. Apesar de medo que se tinha apoderado dele, uma figura franzina de oito anos, começava a vislumbrar a oportunidade para resolver, de uma vez por todas, aquela impossibilidade de liquidação do Diabo. Com jeitinho, pés de lã, foi rodeando a mesa para lá da qual estava o Diabo, aproximando-se de uma faca de cozinha que repousava ali a pouco mais de um metro. Com jeitinho, foi esticando mão, um olho na faca e outro no Diabo. A solução estava ali mesmo, a instantes: um salto de gato, mão no cabo de madeira e uma facada fulminante na barriga do Diabo.
Sorte do Diabo que as tias do meu paizinho estavam interessadíssimas em acompanhar as reacções dele perante aquele monstro, convencidas de que agora é que lhe iriam dar a volta às ideias. Sorte do Diabo que as senhoras perceberam, quase tarde demais, as intenções da criança e a utilidade da faca de cozinha. Sorte do Diabo, que elas saltaram para a faca a tempo.
Sorte da minha avozinha, que deve ter passado mal a noite agonizada com o preço que quase pagou pela brincadeirinha de se trajar de Diabo. pickwick