Sábado já começam as festividades por ocasião da transição de ano. Eu detesto festas. Só festinhas, no pêlo. Mas, festividades é uma situação diferente. Festividades é um conjunto de festejos relativos a qualquer coisinha. Não sei se é isso que diz o dicionário, o que duvido, mas, se não for, passa a ser. Assim sendo, e para manter a tradição, o povo ajunta-se no majestoso e luxuosíssimo apartamento do qual sou proprietário, no dia 30 à noite, para ultimar os preparativos para a noite seguinte, ao redor de umas travessas, umas garrafas e muitos copos. Um jantar, portanto. Este ano, para variar, os palpites apontam para que as gajas estejam em maioria. Isto, como bem se percebe, pode resultar numa tragédia grega, numa deturpação do conceito de festividade, num abafar de liberdades. Com gajas, tudo é possível, especialmente quando estão em maioria. Não sendo necessariamente por causa delas, embora possa admitir alguma correlação, dediquei os últimos dois dias a dar um jeitinho aqui na mansão. Eu não devia dizer isto, mas havia aqui coisas que não eram limpas há quatro anos, ou seja, desde que vim para aqui morar. Também não eram coisas assim muito importantes, só umas poeirinhas insignificantes nas prateleiras, umas janelas sebosas, e coisas afins. Até o meu computador mereceu uns mimos. Após quatro anos de uso diário e intensivo, sentei-me à beira do teclado com um borrifador limpa-vidros, papel e uma escova de dentes. Durante quatro anos, 99,9% das refeições nesta casa foram tomadas nesta presente mesa, com o prato sempre entre a boca e o teclado. As restantes refeições foram tomadas normalmente, numa mesa com toalha, por ter visitas em casa. Ora, como é de imaginar, quatro anos a teclar e a comer, não podem deixar um teclado indiferente. Este, estava imundo! Sebo das pontas dos dedos gordurosos durante o Verão, pingos da sopa durante o Inverno, molho de tomate durante o ano inteiro, enfim. Ao fim de longos minutos a escovar, ficou que parece novo, à parte a letra “E” que já quase não se vê, e mais cinco letras que um dia destes também vão desaparecer de tão gastas que estarão. Ficou um serviço bem feitinho, convenhamos. Ao fim de quatro anos, decidi-me, finalmente, pendurar na parede o escaparate que tinha comprado para as especiarias, para o sal e para o louro. Foi só fazer dois buraquinhos, buchas e parafuso, e ficou feito. Não sei porque carga de água esperei quatro anos para isto, com o escaparate sempre ali assente no chão, cheio de especiarias e porcarias e muito pó. Na mesma onda revolucionária, resolvi tratar de uma avaria técnica ali na casa de banho, que já se arrastava há muitos e longos meses. Queria evitar usar a palavra “anos”, para não parecer tão mal, mas confesso que perdi a noção. A avaria era com o estúpido do autoclismo, sendo que o encaixe do tubo de descarga na loiça da sanita tinha uma fuga e largava litros de água para o chão. Durante este tempo todo, resolvi a coisa com um alguidar lá debaixo, que tinha que esvaziar com alguma frequência. Como os pingos não caíam certeiramente, até porque a fuga parecia o filme da “Fuga das Galinhas”, o chão estava constantemente molhado, pelo que tinha de ter sempre junto do alguidar a bela da esfregona, para embeber a água entornada. Portanto, assim muito friamente, a minha casa de banho teve, durante todo este tempo, o aspecto típico de um WC de uma asquerosa Estação de Serviço perdida numa estrada qualquer atrás do sol que já se pôs. A pingar. Sempre a pingar. Como já tinha pendurado o escaparate, achei-me com toda a pinta para desmontar o autoclismo e armar-me aos cágados feito canalizador. Até nem custou muito. O anterior dono tinha tido um problema idêntico e resolveu-o com uma camada descomunal de silicone transparente, que durou durante algum tempo, mas que acabou por ter fugas. Depois vim eu, há muito tempo atrás, e tentei resolver o problema com mais silicone, desta feita de cor branca, que não resolveu nada, pois o estúpido do tubo continuou a largar água. E pronto, lá tive que me chatear, desmontar tudo, escapando por um triz ao desastre de partir o depósito só para o arrancar da parede, quando aquilo está feito para ser retirado por encaixe e com muita delicadeza. Tirei a silicone toda, deixando-me levar por pensamentos obscenos sobre seios recauchutados numa clínica no Brasil. Saí e fui a uma casa de materiais de construção, explicar o meu drama a um senhor que me atendeu de forma profissional, explicando-me como funcionam os encaixes e os tubos e os autoclismos. Cinquenta cêntimos foi quanto custou uma pecinha de borracha que deveria fazer as vezes dos quilos de silicone, vedando correctamente o encaixe do tubo na sanita. Foi aqui, nesta loja, com este senhor, que aprendi a falar caro, usando termos altamente técnicos da gíria profissional, como “tubo de descarga”. Bem, já não tenho a certeza se era tubo ou canal, mas não interessa. Ficou o problema resolvido e não se fala mais nisso. Bom, o problema seguinte prendia-se com o número de intervenientes no início das festividades, ou seja, no jantar de dia 30. Uma vez que só tinha sete assentos e as previsões apontam para um número entre oito e onze pessoas, lá tive que ir à cidade desencantar uns bancos baratos para remediar a situação. Encontrei-os a quatro euros. Depois, para tornar os bancos mais aconchegantes, fui comprar daquelas almofadinhas para bancos, que ajudam a acomodar as nádegas durante as longas horas de pasto e rega. Quando cheguei a casa, e juntei as duas coisas, é que reparei realmente no lindo serviço que tinha feito: os bancos são quadrados e as almofadas são redondas; para mais, as almofadas são de um tecido branco-sujo, o que até fica bem, não fosse o facto de terem desenhos de vaquinhas leiteiras com ar de atrasadas mentais, e serem contornadas por uns folhos muitíssimo abichanados, tipo aquelas saias rodadas e curtinhas que as miúdas assanhadas usavam nos anos sessenta. Portanto, em jeito de conclusão, vou ser gozado até mais não quando o pessoal chegar para o jantar. E eu que só estava a querer ser simpático e proporcionar conforto às visitas. Ora gaita! E, para o jantar, a ementa! Ora bem, o plano é simples. Numa travessa, que irá ao forno, vou meter lombo de porco, linguiça, entremeada, salsichas frescas, chouriço e entrecosto. É o que chamo pomposamente de “Assada Mista”. Costuma haver a “grelhada mista”, e agora passa a haver, também, a “assada mista”. Noutra travessa, a ir também ao forno, mas noutro forno, vou meter batatinhas redondinhas e pequenininhas, umas descascadas e outras também não, provavelmente em fundo banhado a azeite com rodelinhas de cebola. Num tacho cozerei arroz, com duas rodelas de chouriço e refogado prévio, que posteriormente irá ao forno (não sei em quê, que por esta altura já não haverá travessas vazias), numa clara tentativa para tostar a camada superior do arroz e simular um suposto “arroz de forno” (que não sei como se faz, mas sei bem como se come). Numa frigideira vou colocar a estufar bifinhos de porco (será estufar? não sei, vão lá para dentro e depois que se entendam os bifinhos com a frigideira…), que quando estiverem a postos serão misturados com cogumelos laminados e ensopados em natas! Natas, essa bomba calórica! Até vai doer. Da penúltima vez que tentei isto das natas, os bifinhos acabaram esturricados e as natas evaporaram-se todas, mas isso são águas passadas. Há que encarar o futuro com fé e pensar positivo. Bem, para a sobremesa é que ainda ando para aqui em negociações, embora já tenha comprado os ingredientes para fazer uma mistela esquisita parecida com “Natas do Céu”. Talvez arranje também um gelado, não vá dar-se o caso de as natas irem para o céu, e um abacaxi para desenjoar. Depois, vamos todos (no masculino) precisar de contribuir para a boa digestão do repasto, ingerindo os denominados digestivos, sendo que algumas experiências que fiz com cachaça e ramos de carvalho estão a fazer um ano de repouso nas garrafas. Depois, espalhamo-nos aqui pelo chão da sala, embrulhados nos sacos-cama, todos grogues, a arrotar a lombo de porco e linguiça, a mandar bufas com cheiro a natas, a tirar macacos e caroços de azeitona do nariz, com vinho tinto a pingar pelos cantos dos olhos, e a dizer muitos disparates, perante o olhar reprovador das gajas que continuarão estupidamente sóbrias e sérias. No dia 31, ressacados de carnes e bebes, encafuamos roupas e comidas nas mochilas, defecamos pela última vez do ano numa sanita de loiça portuguesa, penteamo-nos (válido apenas para os que possuem capilares de comprimento superior a oito milímetros) e fazemo-nos à estrada em quatro rodas, em direcção à serra. Lá chegados, mochilas às costas, serra acima, para chegarmos ao destino e concretizar, com toda a pompa e respectivos foguetes, o festejo de transição de ano. A não esquecer: colocar despertador para as 23h55m, dado que, a avaliar pela última década, a noite de dia 31 costuma acabar pelas 22h00, com toda a gente entornada e com comida até à língua. Depois, que venha 2007, que a gente não tem medo! pickwick