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Arautos do Estendal

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Arautos do Estendal

13
Abr05

Sonhos

riverfl0w
Eu outro dia tive um sonho: sonhei que tinha sonhado! Acordado! Sonhei acordado que tinha sonhado a dormir. Ora aqui está uma parvoíce completa. Ainda pior que dizer que se come comida. E, porque o mundo é feito de parvoíces e caroços de azeitona, sonhar que se sonha também é uma realidade. Talvez um sinal tímido de que a corda bamba começa a abanar mais do que a conta, que o suave deslizar das águas no ribeiro já se transformou num perigoso turbilhão de espuma, que tem de haver, algures, um botão de stop para carregar que nos devolva ao estado natural das coisas: em que não é preciso sonhar que se tem um sonho, em que o sonho faz parte de nós, como o ovo estrelado faz parte do ovo-a-cavalo. Já perdi a conta aos meses que passaram desde o último sonho a dormir. Sonhar acordado com o regresso dos sonhos a dormir, começa a tornar-se demasiado habitual para ser um estado normal de um ser humano. Ou seja, não é normal. Nós não costumamos ser normais, eu sei, mas façamos de conta que há uma fasquia mínima de requisitos para um certificado de normalidade, acima da qual sonhar é um “must”. Se não se sonha, está-se abaixo da fasquia, logo não se está normal. Não necessariamente anormal, mas certamente não normal. Tipo as mulheres, quando não estão necessariamente estragadas, mas já estão um bocadinho fora do prazo. As coisas pioram quando, para cúmulo, e além de não se ter sonhos a dormir, os sonhos que se têm acordado são em versão do avesso. Como é que um sonho tem uma versão do avesso? Não sei, lembrei-me disto agora mesmo, mas posso tentar traduzir. Assim, um sonho normal pode ter duas formas: a forma boa-fábula, em que o lobo mau come o capuchinho vermelho, ou o João come a Sónia no areal da praia da Ericeira; a forma cabo-das-tormentas, em que o capuchinho vermelho é comido pelo lobo mau, ou o Artur é atropelado por um rinoceronte ao passar em frente de um bar gay. Quando um sonho deixa de ser normal, sonha-se do avesso. Sonhar do avesso, como o próprio nome indica, é como vestir uma camisola do avesso e ficar-se numa embrulhada de gestos ineficientes e patéticos a tentar vesti-la correctamente, mas sem a tirar. Inexplicável, entenda-se. A púcara bate no fundo do poço quando estes sonhos do avesso nem sequer acontecem a dormir. São tidos de olhos bem abertos, esbulhados, a transpirar desespero. A luz ao fundo do túnel já nem faz parte do sonho, já que o túnel não passa de um buraco feito na terra, com o diâmetro mesmo à medida do nosso crânio. Anseio pelo dia em que os sonhos normais e de boas-fábulas regressem aqui, a esta praça. Em que possa sonhar, a dormir ou acordado, com coisas que sei que vão acontecer, mais dia menos semana, pois, para quem não saiba, o maior prazer da vida é sonhar por encomenda: sonhar com alguma coisa que sabemos que vai acontecer, para que o sonho se concretize. É que o mundo já está cheio de gente a sonhar com coisas que nunca vão acontecer, embriagados com revistas pirosas e programas de TV intragáveis. Os infelizes, portanto. Demarquemo-nos! Sonhemos sonhos que se venham a concretizar. É o verdadeiro orgasmo da mente: concretizar um sonho! Entretanto, enquanto sonho com o dia ou a noite em que volte a sonhar a sério, vou sonhando com a dramática tarefa de virar a camisola sem a tirar. Na ingénua esperança de que este seja mais um sonho que se venha a concretizar. pickwick