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Arautos do Estendal

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Arautos do Estendal

04
Out06

Pato Donald contra Forasteiro da Tenda Quechua

riverfl0w
A ideia era escrever uma estória com base em três frases, dadas inicialmente. A saber:
- o café da aldeia estava cheio;
- uma faca é sempre um perigo;
- desapareceu num túnel escuro.
Lindas frases, não são? O Asa Vermelha fez a dele, como lhe competia, mas eu não resisto a aproveitar a ideia e fazer também uma estória romântica, um épico, uma obra-enteada. Aqui vai.
A noite caíra com o estrondo do ribombar dos trovões, lá para os finais do século XIX. Parecia uma mistura entre um rancho de tambores do Minho e um campeonato de bufas intestinais. Alguém, lá em cima, estava chateado. Apesar do mau tempo, o café da aldeia estava cheio. Os habituais clientes não fizeram caso da chuva e dos raios e coriscos que os céus vomitavam, e atravessaram as ruas enlameadas da aldeia até ao café. Valeria a pena? Claro que valia! Para além das pernocas saltitantes e despidas das meninas do grupo de dança, dos arranhões sonoros no piano desafinado, dos frequentes duelos de revólver e balázios de cobre pelos ares, dos festivais de chapada e soco a que ninguém quereria faltar, esta noite presenteava os clientes com um espectáculo novo e singular. Um forasteiro com ar de maricas, armado apenas com quatro facas penduradas à cintura, camisinha de renda, relógio digital com calculadora, rádio, leitor de DVD e alarme para telenovelas, colete de pele de coelho e uma tatuagem de túlipa no pescoço, fazia uma demonstração de lançamento de armas brancas. Uma das meninas do grupo de dança, chamada Joana, já visivelmente embriagada, prestava-se a fazer de alvo, encostada a uma parede de tábuas. O público bradava, guinchava, pulava e bebia ainda mais. O forasteiro dominava a coisa! Uma a uma, tirava as facas das bainhas e lançava-as com mestria inigualável em direcção à menina, que tremia e gemia e revirava os olhos quando a faca se cravava na madeira gasta da parede de tábuas, soltando umas lascas e rasgando mais um bocado do tecido do seu provocante vestido. A cada quatro lançamentos, o forasteiro ia buscar as facas, encaixava-as novamente nas bainhas, voltava atrás e repetia a proeza. Muito bonito! Aos poucos, o vestido transformou-se em farrapos e a dançarina provocante deu lugar a um corpo semi-nu, para gáudio dos clientes que começavam já a uivar, com os olhos a saltarem das órbitas e a caírem nos copos de uísque e laranjada. Grande farra que para ali ia. Nisto, sem que ninguém desse conta, as portadas do café abriram e entrou o pato Donald. Ninguém deu por ele, tal era a algazarra ali dentro. Deviam ter dado por ele, já que a menina dos farrapos era a sua pretensa namorada. O pato Donald, obviamente, não gostou do que viu. Montes de homens feios, barbudos, mal cheirosos e embriagados, a uivarem por causa da nudez cada vez maior da sua namorada, cujas vestes estavam a ser trinchadas pelas facas de um forasteiro qualquer com ar de larilas. Não tinha graça nenhuma! Nenhuma mesmo. Com a sua poderosíssima voz, um sotaque intragável e montes de gafanhotos, o pato Donald passou um raspanete naquela malta toda e desafiou o forasteiro a um rápido ajuste de contas devido àquela afronta toda. O povo tremeu. Oh sim! Aquilo ia dar molho. O pato Donald estava mesmo chateado de todo e nada de bom ia sair dali. As penas roçavam nervosamente as coronhas de madre pérola dos dois revólveres Colt 45 Tó Malá que lhe pendiam do cinturão carregadinho de munições. Chispas e fagulhas saltavam-lhe pelos olhos! Num ápice, como ao outro que se lhe abriu um caminho pelo mar dentro, formou-se um corredor em linha recta entre o forasteiro e o pato Donald. O público estava embriagado e excitado com a lingerie minúscula da menina do grupo de dança, mas não tinha perdido a consciência ainda. Um balázio do pato Donald podia atingir qualquer um e uma faca é sempre um perigo. Havia que dar espaço para os objectos voadores. Mais trovões lá fora, menos barulho dentro do café. Olhos nos olhos. Moscas no ar, a zumbir. Medo. Muito medo. De súbito, o forasteiro saca das quatro facas ao mesmo tempo e lança-as em zigue-zague na direcção do pato Donald. A poucos centímetros de atingirem o alvo, as facas cravam-se no corpo excitante da Teresa Guilherme, que sempre teve um fraquinho por homens mais novos e mais baixos e mais não sei o quê, nomeadamente o pato Donald, e que resolveu sacrificar a sua vida pela do pistoleiro das penas brancas, que tanto amava, interpondo-se entre as lâminas afiadas e o corpo do Donald. O pato ficou pior que estragado. Sangue por todo o lado. Ainda mal tinha sacado dos revólveres e já estava com as penas brancas todas sujas. Raios partam as gajas, grasnava o pato, que ninguém percebia mas todos entendiam. Pior que estragado, Donald sacou das armas e foi balázio para cima do forasteiro, dos candeeiros, do piano, dos espelhos, dos copos, para todo o lado. Os clientes corriam que nem doidos em todas as direcções! Agora é que ia ser o bom e o bonito, com o pato Donald fora de si. O forasteiro, agora desarmado, largou a correr por entre a multidão descontrolada e aterrorizada, perseguido pelos balázios pouco certeiros do pato, até conseguir escapar, de um salto, pela janela do café. Já na rua, chapinhou rua abaixo, pela lama fora, tentando escapar aos tiros do pato Donald, também já na rua. A coisa estava cada vez mais feia, pois o pato Donald tinha umas patas estilo barbatanas e progredia na lama com uma velocidade surpreendente. Sentindo-se a ser apanhado, o forasteiro dobrou uma esquina e enfiou-se num beco sombrio, sem saída. Ao fundo do beco, estacou, tacteando as costas em busca de algo. Nisto, apareceu à boca do beco, o pato Donald, com os revólveres a fumegar que nem cachimbos de ópio em sobreaquecimento. Atónito, o pistoleiro das penas viu o forasteiro tirar, detrás das costas, um disco com cerca de um metro de diâmetro, de cor verde, com umas letras enormes a dizer “Quechua”, que lançou para o chão à sua frente. Quando o disco caiu no chão, já não era mais um disco, mas uma espécie de iglo, com uma portinhola, pela qual o forasteiro se meteu e de onde nunca mais saiu e nunca foi visto. No dia seguinte, o tablóide sensacionalista da aldeia publicava a notícia: “Grande duelo entre o perigoso pato Donald e um forasteiro desconhecido que rasgou a roupa da namorada do pato à facada. Balas perdidas fizeram quarenta e três mortos, noventa e um feridos e partiram a dentadura do Avô Cantigas. Forasteiro escapou-se do café do Ti Leandro e desapareceu num túnel escuro e misterioso, ao fundo do Beco das Cagufas”. pickwick