É feriado, que por acaso é Dia do Trabalhador, e um gajo mete-se a jeito para um dia de sossego, na paz e harmonia de um lar isento de stress. Começa-se por abrir as janelas, para deixar entrar um projecto falhado de luz solar. Um passeio matinal de pouco mais de dez metros pelas assoalhadas, para verificar se há monstros mutantes renascidos das cinzas da noite. Um copo de água. As plantinhas estão na mesma, que sem sol não há quem cresça. Ligam-se os dois computadores, verifica-se o mail, tiram-se uns apontamentos, abrem-se uns documentos, planeia-se o dia de trabalho, come-se uma bolachinha ou duas ou cinco, suspira-se de prazer por um dia tão sossegado e promissor. Entretanto, tira-se um generoso naco de lombo de porco do frigorífico e esfaqueia-se cirurgicamente em quatro locais distintos, pelos quais se introduz, a seguir, outras tantas linguiças picantes. Unta-se com especiarias que fazem mal aos corações mais sensíveis e mergulha-se a coisa em vinho branco. Ao almoço, irá ao forno com umas batatinhas. Um gajo até se baba, só de imaginar o petisco. Regressa-se ao computador e prossegue-se com uma pesquisa na lista de espécies autóctones.
Nisto, ia a manhã a meio, a campainha da porta começa a zurrar desalmadamente. Deve ser um vendedor de sabonetes lava-rabos ou técnicos de TV por cabo. Devia, mas não foi. Eram dois compinchas de longa distância, que por essa hora deviam estar algures a passear-se pelas serras de Arada e S. Macário. Em vez disso, estavam à minha porta, a sugerirem-me calçar as botas e abalar com eles para o passeio pedestre. Ora, um gajo com tanto trabalhinho para fazer, tanto lombo para assar e comer, tanta paz e tanto sossego, não cede facilmente. Ao fim de muita conversa da treta, e de uma actualização de conhecimentos aos comandos do Inkscape, não tive outra alternativa senão calçar as botas, meter meia dúzia de tarecos na mochila, e sair porta fora, renunciando heroicamente, qual mártir de uma causa desconhecida, a um dia de trabalho e paz e sossego e lombo de porco.
Algures no meio de nenhures, ou na Serra de Arada ou na Serra de S. Macário (venha o diabo e escolha!), deixámos o carro numa amostra de povoação, com um nome do género covas-de-qualquer-coisinha, e partimos rumo a uma garganta que subia quase até aos céus, por entre calhaus afiados e vegetação rasteira.
Umas fotos artísticas às folhas de carvalho salpicadas por pingos de água da chuva, uma gincana por entre incontáveis poios de vaca, tira impermeável, mete impermeável, volta a tirar, volta a meter, ora chuva, ora sol, enfim. Entretanto, hora do almoço. Paragem numa encosta, pseudo-abrigados do vento e da chuva numa curva abrupta. Chouriça a assar, queijinho, pão da véspera, bolachas, e uma mísera e única garrafinha de tinto alentejano, tudo para repartir por três estômagos esfomeados pelo esforço da caminhada e pelo avançado da hora. Com chuva a meio, o que deu muito jeito para deixar que algumas pingas aumentassem o volume do tinto nos copos – o desespero tem destas coisas… estragar um tinto requintado (Reguengos) com água da chuva.
Após o repasto, retoma-se a caminhada, sempre a subir. Entretanto, estala uma acesa discussão sobre vacas, a propósito dos incontáveis poios de vaca que evitávamos pisar, os quais, para surpresa de todos, eram maioritariamente provas inegáveis de que as vacas daquelas paragens não andam a ter a melhor das alimentações. Quem já andou pelo Portugal profundo, em terras frequentadas por bovinos, conhece muito bem o aspecto de um saudável poio de vaca – uma espécie de bolo de côco em cima do qual assentou as nalgas um simpático babuíno. Mas, os poios de hoje, eram mais do género arroz doce com ervas aromáticas e uma pitada de pimenta preta. Uma nojeira. Daí até começarmos a insultar a vacaria da região, foi uma questão de segundos. Só que, a bem dizer, houve ali uma dificuldade linguística conceptual que limitou a nossa agressividade: não se vai insultar uma vaca, chamando-lhe “vaca”. Ainda começámos com isso, aproveitando a liberdade dos montes. Mas, soou tão mal, que… “suas cabras!...”, ainda começou o Miguel… mas, nããã… ainda soou pior… E andavam três gajos, a subir um monte, a chover, no meio de giestas e tojos, a pensar que nomes feios haveriam de chamar às vacas que se borravam todas a subir o mesmo monte. Entretanto, a uns cem metros, três vacas pardas olhavam-nos com alguma atenção. Fiz “mmmm” e uma delas respondeu, mas depois falhou o vocabulário e a conversa ficou por ali.
Entretanto, actualização geográfica, o Nando saca das cartas militares para nos posicionarmos no terreno e melhor planearmos a ascensão até ao cume. Ups! Eram da Serra do Caramulo! A conversa mudou rapidamente das vacas indígenas e da falta de consistência do respectivo cocó, para os sinais evidentes e inegáveis de pré-senilidade do Nando – mas ele é que tocou no assunto, nós limitámo-nos a anuir simpaticamente!
Umas centenas de metros mais à frente, o terreno começou a complicar-se. O acesso à garganta era impraticável, e o Nando, que era o guia da expedição, descobriu que tínhamos falhado o trilho correcto ainda antes do almoço. Mais um sinal de pré-senilidade, claro. Logo a seguir, outro sinal de pré-senilidade: a bateria da máquina fotográfica tinha vindo praticamente descarregada, assim como a bateria extra!
Voltámos para trás, depois de cinco minutos de paragem estratégica para deixar cair livremente uma carga de granizo, regressando ao carro e encerrando oficialmente o passeio pedestre. A meio da descida, mais um sinal de pré-senilidade: a única laje de xisto escorregadia que havia ao longo do trilho, foi precisamente onde o Nando meteu as botas e zás!, de rabo na pedra. Então, partiste o cóccix? Ah e tal, não, não, que tenho umas boas nalgas. Prontinho, adiante, adiante. Conversa sobre nalgas, e as nalgas da amiga do Miguel que tinha quase partido o cóccix porque não tinha as nalgas tão acolchoadas como as nossas e mais não sei o quê… Nestas alturas, dou graças por não termos companhia feminina, senão, não haveria reputação que sobrevivesse ao nível tão eloquente das nossas conversas...
À chegada ao carro, o nosso guia fez mais uma descoberta estonteante: olhem, ainda bem que voltámos para trás lá em cima… é que íamos na garganta errada… estou mesmo a ficar senil… - e apontou para uma majestosa garganta afunilada entre medonhos penhascos, sobrevoada por uma camada de nuvens do mais negro que havia disponível, à direita da garganta que tentámos subir e que não nos levaria a lado algum, até porque não tinha mesmo trilho algum para levar ao cume. Mas, aquela outra, sim, era uma garganta para Homens! Enfim, fica para uma próxima. De preferência, quando o guia se lembrar de levar as cartas militares certas! pickwick