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Arautos do Estendal

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Arautos do Estendal

19
Jun12

A cor do primeiro encontro

pickwick

Ao fim de longos meses de espera, de anseio, de lábios mordidos, de talvezes, de qualquer-dias, a Liliana viu-se a braços com o facto de ter três dias para escolher a roupa para o seu primeiro encontro com o Mateus. Naturalmente, recorreu ao meu aconselhamento técnico, dadas as minhas excepcionais capacidades para debitar baboseiras sobre vestuário feminino.

 

A primeira coisa que me veio ao pensamento, foi o meu primeiro encontro com uma mocinha, lá para o ano de 1985. Era uma rapariga engraçadinha, que me enchia as medidas, com uns lábios imprevisivelmente carnudos naquelas feições orientais. Uma mulher, é sempre uma mulher, seja chinesa, como ela, ou nem por isso, com as mesmas expectativas, preocupações e anseios. Acontece que a rapariga deve ter procurado aconselhamento técnico para aquele primeiro encontro. E tal foi a intensidade do aconselhamento, que eu quase não a reconhecida, tal era a transformação. O longo cabelo negro, que eu tanto desejava afagar e sentir, estava todinho apanhado no cimo da nuca, num enrodilhado artístico que mais parecia um cocó de São Bernardo. Desilusão completa! Semanas a fio, a imaginar-me pendurado nos fios do cabelo dela, qual Tarzan romântico, deitadas pela sanita abaixo com aquela amarração escusada. O corpinho, que eu venerava, e que conhecia ora debaixo de um uniforme escolar branco e imaculado, ora debaixo de um vestuário sóbrio, estava escondido debaixo de um exercício de alfaiate muito mal conseguido. Um vestido armado ao chiquérrimo, a atirar para o balão, que tira a qualquer homem a vontade de abraçar a cintura feminina. Uma desgraça. Para completar, uma mistura impressionante de bodegas a cobrir-lhe o rosto, que hoje compreendo, mas que na altura me deu a volta ao estômago. Para mim, que aprecio a sobriedade e a naturalidade, foi uma tacada de basebol no queixo. A coisa começou logo a correr mal, muito mal, e terminou pessimamente. Nunca mais ela falou comigo, nem eu com ela, e muitas pragas me deve ter rogado. Eventualmente, poderá ter ido para freira, à semelhança da… coiso… bom… adiante…

 

Portanto, tentei orientar o meu aconselhamento técnico no sentido do desaconselhamento. Isto é, nestas coisas, mais vale uma mulher ficar “quieta”, do que meter-se com invenções e acabar num estado desagradável à vista. Apesar disso, a Liliana insistiu em ir de vestidinho. Tem corpinho para isso, obra das longas horas quase diárias que tem passado no ginásio desde há muitos meses. Só faltava escolher a cor. Preto, vermelho, branco e preto, salmão.

 

Branco e preto, não, porque baralha. Não se pode deixar um homem baralhado, quando o objectivo é não o deixar fugir. É uma espécie de gelado “Perna de Pau”: não se sabe se começar pelo chocolate, pelo branco, ou pelo vermelho, ou mudar para uma sandes de presunto.

 

Vermelho, também não. Fere a vista e atinge o cérebro masculino, podendo provocar lesões atitudinais indesejáveis. Parece um fogo que não queima, como uma roseira que não pica, pelo que o homem, seja bombeiro, pirómano, ou maricas, não terá receio algum em se atirar de cabeça para as chamas.

 

Salmão, só a partir do segundo encontro. Salmão transmite uma ideia de fragilidade. Um homem a olhar para uma mulher vestida cor de salmão, é como um urso no Alasca a olhar para as águas baixas de um ribeiro, onde um salmão de aspecto delicioso aguarda pacientemente pelo seu fim, entalado entre dois calhaus.

 

Preto, é que é. Primeiro, ninguém desconfia. Depois, impõe respeito. Não baralha. E tem a vantagem de concentrar o olhar masculino, que fica hipnotizado como que à procura do fundo num buraco negro. E, como diria o poeta, homem concentrado, é homem garantido.

 

E nem penses em levar aquela mini-saia rodada e arejada! Senão, acabas o encontro romântico no hospital, com o pobre Mateus em estado grave de encravanço cardíaco, de língua de fora, espasmos na perna esquerda, olhos revirados, súbito crescimento capilar, e um prolongado uivo disfarçado de suspiro… pickwick

27
Set07

Na senda dos malfeitores

pickwick
(comentário sociológico… talvez as televisões estejam mais numa de entrevistarem sociólogos, em vez de políticos rascas)
Hoje as notícias traziam uma notícia humorística. Eu adoro notícias humorísticas. Falava sobre um malfeitor, tipo ladrão, que rouba as pessoas, e que tinha assaltado umas casas ou lá o que era. Um gatuno, portanto. Azar do catano, uma das casas era de um juiz qualquer. Eu não gosto de juízes. Deviam morrer todos afogados numa fossa séptica. Fiquei logo em pulgas com a notícia, porque as notícias de assaltos de há largos meses para cá, terminam sempre da mesma maneira: a polícia esfalfa-se para caçar os malandros que andam a meter-se com as pessoas de bem, apanha-os, levam-nos a tribunal, e o senhor doutor sua excelência excelentíssima manda-os em liberdade coitados, para qualquer dia se pensar em julgá-los ou pagar-lhes umas cervejinhas ou outra coisa qualquer que esteja dentro da mesma onda e tenha igual importância. Assim que vi a notícia, pensei: será que o pobre coitado vai sair em liberdade com aquela medida manhosa que permite à escumalha dar cabo da vida a qualquer cidadão e continuar a viver calmamente, com uma palmadinha nas costas? Cheirava-me que não. E, claro que não! Preventiva com o desgraçado. É preciso ter azar. Os juízes deviam ter as suas residências identificadas com um pano cor-de-verde-limão içado numa vara de bambu, mesmo no cimo do telhado. Enfim. Ou não terem residência, pronto. Ou não existirem. Ou assim. Bom, o tema e o choque que não deveria ter tido, remeteram-me, durante uns momentos, para uns pensamentos “vintage”, próprios de uma juventude cheia de hormonas inflamadas e muito pouco juízo. Nesse tempo, havia soluções rápidas para tudo. Depois de roubarem uma televisão de casa dos meus pais, era óbvio que a nação necessitava de uma perseguição eficiente e fatal. Dediquei horas a elaborar planos e perspectivar cenários. Sempre gostei de elaborar planos e perspectivar cenários. Os meus primeiros planos de sempre foram elaborados aos onze anos, encavalitado no cimo de uma parede que fazia de divisória nas casas-de-banho de uma caserna militar. Nesse tempo (a isto chama-se um “nested flashback”), e derivado da revolta que nutria por todo o ser humano que me chateasse o juízo, a solução óbvia era evadir-me para o outro lado do Atlântico. Assim, no cimo da parede, de caneta e bloco de notas na mão, fiz os planos. Material necessário, embarque clandestino num barco de transporte de contentores ou porcarias com destino ao Brasil, desembarque às escondidas, viagem para a Amazónia, construir cabana, caçar, fogueira, água, tanga à Tarzan, paz e sossego. O amigo que estava empoleirado na parede do lado e me escutava cheio de paciência, dava conselhos, punha questões, ria-se e abanava a cabeça. O bloco já não deve existir, nunca fui ao Brasil, mas a mania de planear idiotices, fugas e tropelias, tinha acabado de começar, prometendo uma carreira de sucessos. Quanto às perseguições aos malfeitores, como forma de contribuir para a limpeza da nação, mereceu planos também muito elaborados. Dupla personalidade e identidade, treino intensivo nas planícies alentejanas, armas silenciosas, métodos pouco convencionais de abater pessoas, matrículas falsas, criação de situações-armadilha para caçar gatunos em flagrante, sessões de tortura nos casos mais negros, e por aí fora. Um projecto de Pelotão da Morte, se conseguisse arranjar simpatizantes. Bairros inteiros a desaparecerem em chamas. Zonas de chuto transformadas em charco de caça aos patos. Depois ah e tal já não sei o quê as gajas e nunca mais me lembrei disto. A culpa, portanto, foi das gajas. Se não fossem as gajas a distraírem-me, a nação portuguesa seria hoje um paraíso de gente de bem, com a gatunagem erradicada. Os jornais bater-se-iam para noticiar coisas bonitas e iniciativas altruístas. Enfim, os caminhos da humanidade sofrem destes revezes. Não querendo parecer machista, embora não deixando de ser macho, relembro, a este propósito, o célebre pensamento da nação chinesa: as mulheres são a causa de todos os problemas que há no mundo. Têm toda a razão. No dia a partir do qual a ciência permita a procriação humana sem a intervenção directa dos seres humanos, as mulheres verão o peso da culpa da Humanidade sair-lhes de cima dos ombros. A partir desse dia, as provetas, ou o que faça o papel, serão a causa de todos os problemas que há no mundo. pickwick