Outro dia, fui dar um passeio de bicicleta naquela altura do dia em que ninguém desconfia, assim a hora e meia do pôr-do-sol, como quem chega a casa depois de mais um dia de trabalho no patronato. Embora tenha já uns percursos alinhavados para puxar pelas pernas, onde se destaca uma descida até ao Mondego e o penoso regresso a casa, sabe sempre bem explorar novos trilhos. Aqui, a aldeia é rodeada por matas de pinheiros e antigos terrenos agrícolas, algumas espécies florestais nativas aqui e acolá, um ou outro ribeiro, e muitas subidas e descidas. Quilómetros e quilómetros…
Relativamente perto, há uma quinta recuperada para efeitos de turismo, cujo tipo ainda não consegui perceber, embora no site da Câmara Municipal falem daquilo como se fosse uma versão rural do “Dolce Vita Tejo”. Para mim, parece mais uma treta para dar de mamar a uns quantos iluminados partidariamente bem conectados.
Acontece que a quinta passou a ter uma vedação de rede. Quem olha através da rede, só vê mato rasteiro e não percebe o que é que aquilo tem de tão maravilhoso assim. A originalidade do local é de tal ordem, que até o nome é original e só pode ter sido produto de momentos de profunda e divina inspiração: Quinta da Vedação (nome de código, claro). A originalidade não é tanta assim, pois já reparei que há mais umas quantas quintas com o mesmo nome espalhadas pelo país. O que quer dizer que, se eu comprar um terreno em nenhures e lá largar uma carrada de tijolos, posso pomposamente chamar o meu terreno de Quinta dos Tijolos. Básico. Muito básico.
Bem, posto isto da apresentação turística, cheguei ao portão da quinta e segui por um trilho apertado que segue do lado direito, junto à vedação, claro. Mais à frente, o trilho alarga-se e, durante uns dois quilómetros, vai-se cruzando com outros trilhos, fazendo curvas e contra-curvas, proporcionando aquele prazer imenso que é ir a esgalhar ora por cima de lajes de granito, ora em terra batida, a ver quando é que um gajo se espalha ao comprido e enfia com a dentadura num naco de rocha.
Entretanto, cheguei a um curso de água que dá pelo bonito nome de Cagavaio. Este, sim, é um nome original e divertido. Passei o curso e segui por um trilho que virava à esquerda, uma vez que o da direita levava a uma povoação onde já tinha passado noutra altura. Em poucos metros, o trilho que seguia passou a acompanhar a vedação da dita quinta. Um trilho majestoso, suficientemente largo para um jipe circular à patrão. Eu nem fazia ideia de que a vedação da quinta continuava para o lado de cá do Cagavaio, o que já parecia ser até um abuso, mas, dada a largura do trilho, não valia a pena reclamar.
Trilho e vedação seguiam lado a lado. Giestas altas, tojos e silvas, compunham a vegetação circundante, misturadas com penedos de granito. Estas coisas de andar pelos trilhos são muito bonitas, mas há que cuidar dos acidentes. Ou seja, cada vez que se atravessam silvas ao caminho, há que apear da bicicleta e levá-la ao ombro, para não arriscar um furozito pouco desejado.
Parei numa laje gigantesca para puxar da Canon e testá-la na caça ao pôr-do-sol, nos poucos minutos que ainda sobravam até o sol desaparecer lá ao fundo, por trás dos montes. Ainda perdi um tempinho a brincar aos fotógrafos, mas deu para relaxar, ali, no meio do nada, só com o laranja do céu, o verde da vegetação o cinzento do granito. Muito bonito.
Depois continuei, pedalei, subi e desci, e o raio da vedação parecia não ter fim. Um verdadeiro abuso. Do outro lado do Cagavaio, atrás de umas árvores, avistavam-se alguns edifícios pintados de amarelo-cocó-de-bebé, a destoarem completamente com a paisagem, já com os pontos de luz a funcionarem. Era o complexo urbanístico da quinta, pois claro. E a noite a cair, a passos largos.
A ideia não era pedalar de noite. Com sorte, daí a poucos metros encontraria outro trilho, mais plano, que me levaria a uma povoação e a partir da qual chegaria a minha casa em vinte minutos. E tanta sorte tive, que, daí a poucos metros, o trilho terminou abruptamente junto a um lameiro ao lado do curso de água. No lameiro, dois burros pastavam. Dos verdadeiros, tipo jumentos, asnos e ah e tal. A vedação continuava a fazer curvas e contra-curvas. À frente, a giestas enormes e silvas a condizer barravam o caminho, numa mistura de densidade impenetrável. Noite.
Nestes momentos, não há compostura que sobreviva! Então aqueles montes de esterco fizeram um trilho ao lado da vedação e depois acabam com o trilho assim, sem mais nem menos?! Cambada de testículos de javali que pariram o caraças da quinta!!!
Há já algum tempo que não praticava o calão lusitano corrente e de baixo nível, pelo que foi o momento oportuno para rever o repertório nacional e desenvolver a expressão oral.
Não havia mesmo outra solução senão voltar para trás, com a visibilidade a desaparecer e a espumar de raiva pelos cantos da boca. Ainda me aventurei num minúsculo eucaliptal que surgiu numa curva, mas, onde aquele acabava, recomeçava a vegetação alta e impenetrável. Meti o “farol” no guiador e foi sempre a abrir até chegar à estrada alcatroada, já depois das 22h00. Enquanto havia vedação, havia asneiras a bailar no ar, predominando as começadas por “C” e “F”.
Cheguei a casa às 22h30, ainda com restos de espuma nos cantos da boca e um olhar assassino como quem deseja ardentemente esfrangalhar à catanada os inventores da quinta e da sua vedação.
Para a próxima, além da bomba de ar para os pneus, do equipamento para iluminação, da chave-estrela, do cabo com cadeado e do spray lubrificante que costumo levar sempre na mochila para estas escapadinhas na natureza, vou levar também uma bateria de doze Volt, daquelas dos automóveis, uns cabos eléctricos com pinças e um tijolo.
E para que quero eu uma bateria, uns cabos e um tijolo? É simples. Da próxima vez que me irritar daquela maneira, no meio do mato, solto o animal que há em mim, salto a vedação, procuro o patrão da quinta, parto-lhe o tijolo na cabeça, baixo-lhe as calças e as cuecas, e frito-lhe os testículos com choques eléctricos. Sacanas, pá!... pickwick