One night in Aveiro
Ora bem, situemo-nos. Sábado de manhã, Alfa Pendular rumo a Lisboa. Duas cadeiras atrás e do lado oposto, uma moçoila de vinte e poucos anos, cabelo preto escuro, sentada de esguelha, dossier no regaço, casado aberto por cima de um top preto muito descaído à frente. Linda. Sexy! Suspiro. Já em Lisboa, a chegar à estação de Santa Apolónia, coloco-me estrategicamente dois palmos atrás dela, mesmo à porta da carruagem. Olho de soslaio. Quilos de rímel pesam-lhe nas pestanas com vinte centímetros de comprimento. Vá, vinte centímetros também não, mas aí uns dois, valia. Mais uma mulher completamente estragada pela maquilhagem. Enfim. Na gare, e para descomprimir, reparo nas mulheres que desceram do mesmo comboio. Uma delas, dois metros à frente, leva uns sapatos com uns saltos altos, daqueles assim altos. Algo vai mal com um deles, que a cada pisadela tomba todo de lado, obrigando a dona a gingar-se num movimento pouco elegante. Mas estas gajas não têm vergonha de saírem para a rua assim com sapatos destes, correndo o risco de fazerem figuras tristes destas? Francamente. Bom, passou o dia, voltei a apanhar outro Alfa Pendular, já sem gajas com decotes, e desembarquei em Coimbra, já noite. Meti-me no bólide e, como combinado de véspera, abalei até Aveiro para jantar. Espetada mista, para quem interessar saber. Nando, para a próxima, é tinto ou cerveja, está bem? Aquela porcaria cor-de-rosa sabia a detergente para o bidé, não tinha gás e estava à temperatura ambiente. Depois, e por uma questão de tradição, uma tripa com ovos moles para sobremesa. Entretanto, Aveiro vivia a folia desgarrada da Festa de São Gonçalinho. A quem não sabe, passo a descrever, em traços gerais, esta festividade. Estão a ver a capela de São Gonçalinho? Pronto, as gajas sobem lá acima com umas sacas enormes cheias de cavacas doces. As cavacas são uns doces foleiros, pintados de branco, que parecem pensos higiénicos fossilizados. Bom, lá de cima, bem de cima, que a capela é alta, onde uma varanda circunda por completo a cúpula da capela, as gajas atiram as cavacas cá para baixo. Muitas cavacas. São atiradas com suavidade e carinho, mas, por alguma razão que desconheço, de vez em quando há uma gaja que se passa e dispara umas cavacas em velocidade rapidíssima. Deve ser dos desgostos amorosos. Cá em baixo, o largo em volta da capela enche-se de gente. Uma dúzia de gajos, de todas as idades, uns com dentes e outros sem eles, erguem para os céus varas enormes, em cujas pontas amarraram sacos, tipo cesto de basquetebol. Objectivo? Pois claro, conseguir apanhar as cavacas com os sacos. Também há uns heróis que se aventuram com as mãos livres, mas só quem não levou com uma vinda lá de cima é que não sabe o quanto dói no osso. No meio disto tudo, há sempre uns caramelos a fazerem batota: em vez de sacos, ou cestos, usam um guarda-chuva todo aberto, tipo antena parabólica. Que falta de desportivismo, francamente. Na rua da capela, dezenas de bancas ocupam um lado e o outro da rua, sendo que vendem, basicamente, cavacas. Sim, um mar de cavacas a vender, chuva de cavacas pelos céus, é uma autêntica paranóia! Como se não bastasse, havia palco montado e artista convidado. Ah pois é! José Cid! Ah pois é! Era tanta gente na praça que só consegui espreitar de fugira o ecrã gigante que replicava o palco. Mas ouvia-se bem. José Cid, pois então. Percebi, após breves minutos, que o José Cid é um verdadeiro artista português. Um artista sério! E estou a falar a sério! Os cantores que andam para aí, com resmas de fãs atrás, pá, francamente, são umas fraudes. Nota-se pelas letras das canções: inventam as coisas mais disparatadas, para rimarem umas coisas com as outras, frases sem sentido, palavras inventadas na hora, parecem estórias escritas por criancinhas de sete anos. Parecem aqueles filmes franceses, armados em intelectuais e que não têm ponta por onde se pegue. É um desastre! O José Cid é que é! E está aí para as curvas. Não o vi, mas pronto, deve estar. Peruca, dentadura postiça e a abanar a cabeça como o Stevie Wonder. Mas será que só eu é que reparo nas letras pirosas que povoam as “obras” do Sardas, do Reininho mal-criado, do JPP, do Ruizinho monocórdico, do ceguinho dos abrunhos e por aí fora? É pá! Não têm jeito nenhum! Bom, provavelmente por via da idade, o espectáculo do Cid acabou pouco antes da meia-noite, pelo que, dada a debandada geral, fui-me plantar no ponto central das pontes, muito estrategicamente, a ver o mar de gente e de gajas que regressava aos seus carros, às suas casas. Muitas gajas! Novinhas, como se não tivessem pais sérios que as impedissem de andar na vadiagem com as amigas àquelas horas, ainda por cima vestidas para seduzir motoqueiros da Zundapp. Só me admirei como foi possível tanta e tanta gente trocar as fantásticas telenovelas-noite-dentro por um espectáculo do José Cid. Será que o povo começa, afinal, a perceber o que é cultura? Ou não. Quando as gajas se esgotaram, fomos ao cinema (crítica cinéfila para breve), fomos beber umas bejecas, assar uma chouriça, e ver um filme em DVD chamado “Leon, o profissional”, em que um assassino profissional com oculinhos à Barão Vermelho desmama uma fedelha a quem ainda não tinham crescido os peitos, ensinando-lhe a delicada arte de “limpar”, ou seja, abater pessoas por encomenda. Bonito! Acabou às cinco da madrugada. O sinal claro da decadência: fico com o estômago cheio até ao pêndulo das goelas, antes de conseguir sequer ficar simpaticamente alegre. Um gajo já nem consegue ir para o cinema a cambalear. Já não tem graça enfrentar, completamente sóbrio, a menina que vende os bilhetes para o cinema. Decadência! pickwick