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Arautos do Estendal

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Arautos do Estendal

19
Dez04

Bang! Bang!

riverfl0w
Lucky Luke? Não! Coelhos! Sei lá… Hoje fui ao mato. Fazer o quê, isso agora não interessa nada. Há muitas coisas que um gajo vai ao mato fazer. Umas interessam, outras também não. A de hoje, não me lembro se interessava ou não, ou então não me apetece dizer. Tanto faz. Mas, mal entrei uns metros por ali dentro, pelo mato, eis ao longe a silhueta mal disfarçada de um fulano trajado de camuflado e boné cor-de-vomitado-de-cerelac. Viu-me e embrenhou-se um pouco mais nos arbustos. Hoje é domingo, o que faz do fulano um caçador. Ou, pelo menos, armado em caçador. E armado, também. Eu não curto caçadores. Têm todo o direito de existir, como as pulgas e os postais de boas festas, mas isso não me obriga a gostar deles, nem sequer a evitar um trejeito de indisposição. Não bastando andarem a desfazer animais minúsculos, como coelhos-anões-lusitanos e perdizes-minorcas, com tiros de caçadeira, é gente que vê demasiada televisão e pode, de um momento para outro, confundir um prato de arroz de marisco com um cágado voador, disparando centenas de chumbos em todas as direcções. Pior ainda, confundir um ser humano com um javali-cor-de-rosa. Poucos minutos depois, chegaram dois carros, três fulanos. Dois deles iam também de camuflado, mas todos com um ar demasiado jovem para terem a noção do que é pegar numa arma de fogo e puxar o gatilho. Com aquele ar muito másculo de quem pensa que é a mesma coisa que puxar o autoclismo lá de casa. Mais uns minutos passados e começou o festival. Bang bang para aqui, bang bang para ali, mais uns minutos de silêncio, e bang bang, e mais bang bang. Mas que praga! Deviam pensar que ali havia veados, bisontes e elefantes, com certeza. Mais uns minutos, metem-se nos carros e vão-se embora. Das duas uma, ou mataram a bicharada toda da zona, ou andam a correr todos os trilhos que partem da estrada alcatroada para darem uso à ferramenta e se sentirem ainda mais homens, passando depois no talho do Pingo Doce para levarem carne para casa. Ás tantas, até são capazes de passar no talho antes, estendem depois os bifes num tronco, mandam umas chumbadas, e vão para casa todos satisfeitos com as peças de “caça”. Bom, eles que sejam felizes. O que eu não gosto mesmo, é aquela sensação de se estar à mercê de uns irresponsáveis, sujeito a servir de alvo a um descuido ou, pura e simplesmente, a uma anormalidade intelectual. É que, bem vistas as coisas, eles andam por todo lado, como as carraças e as baratas, inundados em direitos, e um gajo pode ver-se apanhado de surpresa a meio de um piquenique. Está mal feito. Aos domingos, os caçadores deviam pegar em pistolas de água do Carnaval, juntarem-se todos no largo da feira e fazerem “tiro” uns aos outros. Divertidíssimo! Depois convidavam umas artistas do cinema porno, para aparecerem em trajes meio transparentes e serem também alvo das pistolas de água. Molhavam-se todas, depois uma delas trazia shampô, aparecia uma mangueira e começavam a lavar os carros dos caçadores. Eles manipulavam artisticamente as mangueiras, entretanto acabava-se o tempo do contrato delas, iam todos ao talho, compravam bifes ou lombo de porco e iam para casa ter com as suas mulheres gordas e peludas e os filhos a jorrar ranho pelas narinas. Felicidade a rodos! pickwick
10
Out04

Crónicas de uma viagem

riverfl0w

Na gare, há bagagens. A abarrotar, apenas cheias, ou com aspecto mais leve. Mochilas, sacos, caixotes selados, malas e maletas. Um estranho interrompe-me a observação. Roupa andrajosa, saco roto:
"Falta-me 1,80€ para apanhar o comboio de Coimbra... será que me pode ajudar?"
Meneio a cabeça. Percebo depois que o preço varia conforme a pessoa abordada. A senhora dos altifalantes fala ininterruptamente:
"O comboio rápido Intercidades com destino a Beja circula com 9 minutos de atraso... Vai dar entrada na linha número 5 o comboio suburbano com destino a Braço de Prata..."
A senhora de botas de cano alto, sentada à minha esquerda, continua a mastigar batatas ruidosamente. Aqui e ali, os beijos apaixonados multiplicam-se, sente-se o ambiente saudosista.
A minha partida, hoje, não passa de rotina. Talvez por isso tenha um aspecto menos ansioso que os demais. O comboio chega sem pressa, a contrastar com a multidão que se atafulha na plataforma. A entrada desordenada anuncia que nada está diferente: as pessoas continuam a querer sentar-se primeiro. O corropio de pessoas e bagagens mantem-se durante alguns minutos, e há sempre alguém que procura o seu lugar já com o comboio em movimento. Desta feita, foi a menina que tinha bilhete para o lugar ao lado do meu, que com um ar ainda um pouco perdido (embora amistoso), afirmou que se iria sentar no banco de trás, para viajarmos "mais à vontade". Cheia de boas intenções, a moça.
As distracções são variadas, no decorrer da viagem: jogam-se cartas, lêem-se magazines, ouve-se música, ou simplesmente assobia-se. Eu escrevo enquanto vagueio o olhar pela carruagem.
A menina do banco de trás faz-se notar com um leve toque no meu ombro esquerdo. "Vou ter mesmo de me sentar ao seu lado...". Respondo com um sorriso, enquanto me levanto.
Já novamente sentados, pondero se deva continuar a escrever... os olhos curiosos da menina passeiam-se de quando em vez pelas minhas letras. Talvez fique por aqui.

A menina foi buscar um livro à mochila. Está de calças verdes, de bombazine. Estou com fome, estamos quase a chegar. riverfl0w

10
Out04

A Bela da Água

riverfl0w
Hoje, chove com força! Ontem também choveu, mas menos impressionante, apesar da ventania. A apreciação da chuva faz-se sob a influência do local e da companhia, não fosse a queda de água um fenómeno psicológico. Por alturas da Primavera, a chuva já não tem a força de agora. Não é que caia com menos força ou molhe menos, mas deixa de ser tão impressionante como agora. É tudo uma questão de hábito, bem vistas as coisas. Como quem deixa de se impressionar com o berbequim do dentista e o arrepiante raspar da broca entre os dentes, lá para a centésima consulta. Mas, estas são as primeiras chuvas de Outono. A valer. Se pingou alguma coisa até agora, não contou. Espero que já estejamos no Outono, já agora. Nunca sei quando muda, o que também não é importante, pois o Outono começa quando o vento sopra as folhas acastanhadas caídas no passeio. Esta chuva, por a ela não estarmos habituados, parece novidade. Há uma mistura de sentimentos que deixamos passar ao lado, ano após ano, de tão vulgar que pensamos que é. Sente-se que algo acabou. Não só os bikinis fio-dental, o geladinho da “Olᔠe a pele bronzeada das meninas que passam, mas também aquele calor e aquela calma que nos fizeram companhia durante alguns meses. Vem à memória a estória da cigarra e da formiga, que não vivemos mas que sentimos cá dentro, em que se acabou o bem bom, e é necessário começar a preparar as coisas para o Inverno que aí vem. Sente-se um arrepio pela espinha abaixo e uma necessidade brusca de procurarmos um local acolhedor onde possamos saborear um pouquinho das lembranças do tempo quente e seco. Mesmo dentro de casa ou de um carro, olha-se pela janela, e o arrepio ainda circula, como que a natureza a dar-nos aquele toque de cotovelo para nos acordar do marasmo do calor. Temos o conforto, mas, ainda assim, demoramos um pouco a tomarmos consciência disso. Como se metade de nós estivesse lá fora, à chuva, desorientado, desesperado para chegar até aqui. Gritamos “Hei! Pssstt… aqui!” e fundimo-nos novamente em nós próprios, esfregando as mãos de contentes por aqui estarmos, abrigados. Quentes. A chuva traz as nuvens, ao contrário do que se pensa. As nuvens vêm por arrasto, porque a chuva é que é mesmo necessária. E estes apêndices, negros, felpudos, acelerados pelo vento apressado, roubam-nos a luz e a cor. Sente-se que de repente tudo ficou cinzento, os sorrisos transformaram-se em expressões carrancudas e desiludidas, e o meio-dia parece mais um entardecer. Fazemos um esforço para procurar algo com que nos alegrarmos, um motivo para sorrirmos. Nestes momentos, somos confrontados com a derradeira questão: somos felizes? É uma pergunta que, inconscientemente, a nossa alma faz ao nosso coração, no segredo daquilo que nos passa ao lado. A resposta do coração, dada no mesmo tom camuflado, condicionará as nossas feições e o nosso estado de espírito. Porque a felicidade não se deixa vencer por um arrepio na espinha. pickwick
29
Set04

Sua Maluca

riverfl0w
Não, não é o nome de um bar gay nem de um barco de pescadores barbudos. É uma expressão! Portuguesa, está claro. Só podia. Aplica-se com alguma frequência, aqui e além, maioritariamente a mulheres, mas também a homens. Quando é a homens, das duas uma: ou é entre gays, ou entre malta com muito bom sentido de humor, sendo que, neste último caso, em 99% dos casos já se ouvem chocalhar umas quantas garrafas vazias em cima da mesa. Quando é a mulheres, ou seja, habitualmente, trata-se de uma delicadeza. É uma forma delicada de chamarmos ordinária, galdéria, leviana, doida varrida, etc. Às vezes, até é a nossa vizinha do lado, e não vamos querer chamar-lhe pelo “outro” nome, pois não? Dizermos “sua maluca” é mais suave, não desperta olhares alheios, não choca velhinhas conservadoras, não fica mal, e até pode ser interpretado de forma positiva. Sim, porque “maluca” também pode ser uma forma positiva de chamarmos alguém, sem usar discursos mais rebuscados nem conteúdos directos. Aí, estamos a substituir uma mistura de engraçada com fofinha, condimentada com atrevida (mas non troppo) e salpicada com um bocadinho de vontade de lhe pregarmos uma beijoca. Dizemos “és uma maluca” com a ternura e a intenção de quem diz “adoro-te”, mas pintada com tinta engraçada. Aliás, e se a memória não me falha, uma das última vezes que disse isso a uma mulher, a minha vontade mesmo era pegá-la ao colo e enchê-la de beijos, embora depois não tenha concretizado a parte do pegar ao colo. E das outras vezes, à mesma mulher, idem. Que não sobrem dúvidas. pickwick
15
Set04

Irritações da pele

riverfl0w
O intrincado emaranhado de neurónios dentro da caixa craniana e logo abaixo do farto (ou parco) couro cabeludo, existe para que possamos, entre outras coisas, ficarmos irritados. Não é uma necessidade, digamos. Se for para alguns, para outros não tanto. Talvez um escape para qualquer coisa que desconhecemos. Uma forma idiota de suprimir do nosso ser acumulações gordurosas de energia inútil, produto de carregamentos vitamínicos inconscientes. Por mais elegante que seja uma irritação, nunca deixará de ser idiota. Não é que haja muitas irritações elegantes, mas é só para dar mais dramatismo ao discurso. A idiotice multiplica-se exponencialmente quando a irritação sobra para cima de quem menos merece essas injustas sobras. Isto é quase uma regra da vida, não fosse andarem na estrada alguns exemplares raros que absorvem esporadicamente as nossas energias negativas através dos ouvidos e dos olhos. Mas, fora essas excepções, confirma-se a regra. Lamentavelmente, eu sei. Mas costuma ser mais forte que nós. Costuma fugir à nossa capacidade de raciocinar, de controlar, de conter. Às vezes, mais vezes do que gostaríamos, movem-nos motivos que só mais tarde nos apercebemos não valerem – nem de perto, nem de longe – a irritação a que nos sujeitamos e com a qual apedrejamos quem menos queremos apedrejar. Chegamos a rogar pragas e a tratar pouco delicadamente alguém para quem afinal sonhamos felicidade e queremos trazer nas palmas das mãos. Há irritações que não fazem sequer sentido, mas que acontecem. Alguém que nos traz um doce e nos irritamos porque estamos de dieta. Alguém que nos arruma a sala e nos irritamos porque queríamos ser nós a arrumar. Alguém que nos tece um elogio e nos irritamos pela teima de que não o merecemos. Alguém que gosta de nós e nos irritamos porque achamos que não tem razões para gostar. Enfim… Somos como a pele, que se irrita por qualquer coisinha… pickwick
14
Set04

Vou-me embora…

riverfl0w
No Alentejo profundo, a vários metros abaixo da linha da civilização, ouve-se um canto de lamento e de esperança.
“Vou-me embora, vou partir mas tenho esperança
de correr o mundo inteiro, quero ir
quero ver e conhecer rosa branca
e a vida do marinheiro sem dormir
E a vida do marinheiro branca flor
que anda lutando no mar com talento
adeus adeus minha mãe, meu amor
eu hei-de ir hei-de voltar com o tempo

Não vais para o mar, se calhar até nem curtes rosas brancas, nem flores brancas, nem flores, nem marinheiros. Não é preciso. Isto é só uma canção. Também não é preciso passar sem dormir. Quer-se dizer, vais fazer umas noitadas a queimar pestanas em cima dos livros e apontamentos, ou a olhar com um ar lunático para os copos vazios numa qualquer mesa de um qualquer bar nessa cidade quase à beira do mar. E, quer queiras, quer não, vais correr o mundo inteiro. Quando se sai de casa, corre-se sempre o mundo inteiro. É sempre assim. O mundo cabe sempre na palma da nossa mão. Partir requer sempre coragem. Mais daqui ou menos dali, dependendo do nosso passado. Não é caso para desesperar. É motivo para sorrir! É uma nova vida que abraçamos, bem diferente da que conhecemos até agora. Fechamos ligeiramente a torneira às amizades que fizemos, por não estarmos tão presentes, e abrimos as portas às novas que aí vêm, de braços abertos. Porque o mundo é assim, como uma bicicleta. Vais gostar da cidade, garanto-te. A viagem até ao teu lar-doce-lar de regresso até nem custa assim tanto. Tem só aquele pequenino gosto a ansiedade na ida e uma leve nostalgia no regresso. Não custa nada. No banco do comboio, aproveitas e lês um livro, escreves umas linhas sentidas ao teu amor, olhas pela janela e vês tudo a passar a correr, incluindo a tua vida. Em cada estação pensas para contigo mesmo que podia ser já ali. Quando o trabalho aperta e sexta-feira não embarcas rumo ao sul, não há que desesperar. É um fim-de-semana com sabor diferente. Vive-se de modo diferente. A saudade teima em pressionar-te para que sintas aquele apertozinho no coração que nos faz suspirar vezes sem conta. Mas, os novos amigos, todos com o mesmo sentir, mostrar-te-ão que nada custa mais do que não ter amigos. pickwick
13
Set04

Silence never wins

riverfl0w
Caro riverfl0w, este era o que trazias no “msn” outro dia, no teu contacto. Perguntei-te e disseste que era um “self made” não-sei-quê. Ou seja, fiquei na mesma. Embora discorde. Discordo, do sentido. O silêncio tem momentos. Ora ganha, ora perde. Confesso que, no meu estádio, o silêncio é um ganhador. Pontua, vezes sem fim, vitorioso, orgulhoso, quase que babado. É como que a arma quase perfeita. Ora nos defende de um qualquer mau jeito da língua, privando-nos de mal entendidos, barbaridades sonoras, papaias despropositadas, descobertas infelizes, erros técnicos, gafes monumentais e outras desgraças ejectadas por entre os beiços. Ora o esgrimimos num ataque incisivo, num impacto vigoroso embora discreto, apanhando a vítima desprevenida e insegura. O silêncio é um bom amigo. Mas nem sempre os amigos são a nossa melhor companhia. Vezes há, não tão poucas quanto gostaria a minha memória, em que o silêncio nos deixa mal. Fica o não dito por dizer, a mensagem por passar, o sentimento por contar, a alma por abrir a quem a quero mostrar e me a quer ver. O silêncio, que nada devia gastar, torna-se num desperdício. São oportunidades que ficam para trás, sim. “Perdeste uma boa oportunidade para ficar calado”, célebre frase com que se injecta um autor infeliz, confronta-se com o menos maldoso “perdeste uma boa oportunidade para abrir a boca”. E agora? Falo ou fico calado? Digo que tens um macaco a sair pelo nariz ou faço de conta que tens as narinas tão limpinhas como o rabinho de um bebé acabado de lavar? Digo o que sinto por ti ou deixo-te ir embora enfiada num poço de frustração por o teu sentimento não ser correspondido? Digo o que sinto por ti ou deixo-te ir embora sem carregares a desilusão de afinal a tua amizade ser mal interpretada e retribuída com algo que te desagrada? Que fazer? Ai, silêncio, silêncio… pickwick
09
Set04

No fio da navalha

riverfl0w
Imagine-se! Uma navalha! Era só o que faltava na praça. Aberta, ainda por cima! É um perigo! Há navalhas que não cortam. Cheias de bocas, gastas pelo mau uso, abandonadas pela incúria de quem não lhes passa o fuzil de tempos a tempos. Outras cortam, medianamente. Algumas demais. A navalha tem um fio. O fio, diz-se, é que corta. Olha-se ao comprido, como quem observa uma obra de arte, como quem segue para o infinito uma linha que acaba já ali. É o fio. Estar no fio da navalha, não é nada agradável. Sentado, de pé, de cabeça, a fazer o pino, tanto faz. O efeito é o mesmo. Mais ou menos afiado, o fio da navalha vai fazendo aquilo para que foi feito: cortar. O tempo passa, mais ou menos depressa, conforme o fio. E, quando o tempo passa, a carne ressente-se, o fio enterra-se-lhe, cortando-a, pouco a pouco, dolorosamente. Eventualmente chegará ao osso e estagnará, numa dor constante, onde não se vislumbra o fim nem se recorda bem o princípio. Com esforço, retesam-se os músculos, o fio penetra mais lentamente, eventualmente a dor poderá ser menor, disfarçada pelo desgaste das forças. Tudo se torna intemporal, perdendo-se a noção que a dor não precisa de ser dor, que não precisamos de estar no fio da navalha. Sim, não é mesmo preciso. Às vezes esquecemo-nos disso. Já que lá estamos, deixemo-nos ficar. Até nos prometemos a nós mesmos que há-de acabar. A navalha há-de cansar-se. Ou saltaremos fora. Podemos planear, jurar, prometer, rezar, desejar, mas há algo de atractivo no fio da navalha, como que um íman, que nos deixa ali, especados, a vermo-nos a ser cortados. A sofrer. Para sempre. Mas… Saltar fora? Não se salta fora do fio da navalha. Ou melhor, salta, mas não é com quatro cantigas. É preciso mais. Muito mais. É preciso não escorregar no salto e cair novamente em cima do fio, com mais força, com mais violência, penetrando ainda mais. É preciso não descuidar o salto, não vá a manobra menos cuidada fazer-nos passar o pescoço pelo fio, apanhando de surpresa o sorriso de satisfação de quem já se julga a salvo, de pés firmes no chão. É preciso cair bem, pois a navalha pode estar lá no alto, muito no alto, e a queda ser grande, muito grande. Mesmo que a navalha não esteja lá no alto, sendo a queda de baixa altura, todo o cuidado é pouco. A confiança nunca é de menos. O seguro é o nosso melhor amigo. Há um tornozelo para torcer, um desequilíbrio para acontecer, um nariz para esmurrar, um braço para deslocar e muitos imprevistos sem prever. É um mar de incertezas com uma ilha no meio. Nesta ilha, a única certeza: continuando no fio da navalha, o fio continua a cortar, lenta e friamente. Mesmo que a queda seja boa, o jeito seja muito, a perícia afinada, há o onde aterrar. Firme. Um tapete que escorrega, uma areia que desliza, uma gordura que patina, tudo pode estar contra nós nesta fuga ao fio. Uma fuga pelo conforto, pelo alívio, pela felicidade. E ele, o fio, continua lá. O aço gelado, como que a rir-se de nós. Pergunto eu: um joelho esmurrado, um nariz partido, um tornozelo torcido, um golpe num braço, valem a pena? Uma perna partida, uma vértebra facturada, valem a pena? Um golpe profundo no pescoço, vale a pena? Voltar a cair sobre o fio, com mais força ainda, vale a pena? E se nos safarmos só uma arranhadela? Ficaremos alguma vez a rir-nos do fio da navalha, num longo suspiro de alívio? pickwick
03
Set04

Another tale

riverfl0w
Era uma vez um chinês. O chinês tinha um filho e muitos cavalos. Esta estória foi o meu paizinho que me contou e não precisa de ser obrigatoriamente sobre um chinês, mas como o meu pai estava a viver na China, passou a meter um chinês. Chama-se a isto Contextualização Geográfica Forçada. Ou manias. Tanto faz. Adiante. Certo dia, o filho estava a montar um dos cavalos, assim a atirar para o bravio e irreverente, quando, no meio da agitação da contenda, o rapaz tomba ao chão e parte uma perna. Danado, o chinês (pai) quase que espanca o cavalo, por causa do acidente. Roga-lhe todas as pragas e mais algumas e pensa seriamente em mandar rifar o animal. Enquanto pensa e não pensa, o imperador manda recrutar para exército todos os moçoilos capazes, para encher a panela da carne para o canhão. Representantes do exército batem à porta do chinês, a esfregarem as mãos de contentes, mas voltam por onde vieram, de mãos a abanar, pois uma perna partida não dá para nada. O chinês, felicíssimo com a escapada do filho às fileiras bélicas, muda radicalmente de opinião em relação ao cavalo, enchendo-o de mimos e paparicos. Tanto encheu, que o cavalo certo dia meteu-se ao fresco, por entre uma cancela esquecida aberta. Lá se danou o chinês, que não tinha assim tantos cavalos que fizesse pouca diferença um a mais ou a menos. Para além das rituais pragas, jurou abatê-lo sem dó nem piedade, mal fosse encontrado. Tipo vingança do chinês. Enquanto era procurado e não era, o animal regressou por iniciativa própria aos estábulos, na companhia de umas boas duas dezenas de outros cavalos, certamente fugidos ou selvagens. Um belíssimo piparote nos números, para o chinês, vendo de repente a sua manada ser engrossada com belos exemplares. E lá se foram as pragas e as juras, voltando o bicho a ser alvo dos maiores mimos por parte do chinês. Fim da estória. Agora a moral. Não me lembro, sinceramente. Isto é embaraçoso… Mas qualquer coisinha se há-de arranjar. Ora bem, vamos lá a ver, isto deve ter qualquer coisa a ver com os altos e baixos da nossa vida, com a imprevisibilidade das consequências que se seguem aos acontecimentos que marcam o nosso dia-a-dia. O que pode ser mau num dia, no dia a seguir pode vir a ser fantástico. E vice-versa. A vida é mesmo feita de incertezas e o que há mais no mundo são cambalhotas. Dadas, e por dar. Se depois de uma cambalhota nos podemos erguer triunfantes para receber os aplausos olímpicos, com a mesma simplicidade podemos ficar estendidos no solo com a coluna estilhaçada e o futuro remetido para o assento de uma cadeirinha de rodas. E vale a pena dar a cambalhota? Claro que vale! Estatisticamente, o mais provável é mesmo fazermos má figura e mais nada. pickwick
03
Set04

The tobacco shop

riverfl0w
Esta mania de dar títulos em inglês há-de acabar. Agora está na moda e por isso tenho de me sujeitar aos caprichos da minha imaginação, qual escravo. Bem, vamos à loja de tabaco. Antes, uma introdução. Há momentos da nossa vida em que, forçados ou por desejo, somos levados até uma situação em que temos de fazer opções de peso. A tomada de decisões sobre algo tão vago como um futuro cheio de nevoeiro, reserva-nos sentimentos de aflição e desassossego. Não nos conseguimos livrar das dúvidas, das incertezas e do receio de errarmos. Há que vencer também umas quantas barreiras, muitas delas impostas pela sociedade ou pelo contexto social em que vivemos mergulhados, fazendo disto tudo uma grande açorda. Ocorrem-me duas estórias que o meu pai me contou numa altura dessas na minha vida. A primeira, era sobre uma loja de tabaco. Era uma vez (tinha que começar assim, ok?) um sacristão, já de certa idade, que sempre fora sacristão. Face a uma lei lançada pelo Vaticano, que obrigava a que todo o sacristão soubesse ler e escrever, este nosso personagem, analfabeto, viu-se obrigado a optar. Ou aprendia a ler e escrever, ou abandonava a arte. Pesou as duas opções, bem pesadas. Se por um lado não estava muito voltado para ir para uma escola, por outro não sabia fazer mais nada na vida. Como na “moeda ao ar”, ficou-se pela segunda opção, abandonando definitivamente a arte, e planeando viver o resto dos dias com as economias que tinha feito ao longo dos anos. Certo dia, passeando por uma certa avenida, acabou-se-lhe o tabaco. O homem tinha o vício no corpo, claro. Mas a avenida não estava pelos ajustes e não havia sombra de tabacaria de uma ponta à outra. Tal falta trouxe-lhe à lembrança que quem ali montasse um quiosque para vender tabaco, decerto faria uns bons trocos. Pensado e feito! O nosso sacristão em breve transformou grande parte das suas economias num muito rentável quiosque de tabaco. Com o passar dos meses e o avolumar dos trocos, o novo empresário não esteve para se ficar por aí e montou mais um quiosque… e outro… e outro… nas várias ruas e avenidas onde ainda não existia um e o negócio se avistava rentável. Quando os trocos já davam lugar a contas rechonchudas, este senhor resolveu que era altura de voar mais alto e investir. Foi ao seu banco e pediu para ser recebido pelo gerente que, satisfeito, o atendeu na privacidade do seu gabinete, ou não fosse um dos melhores clientes. Explicado o motivo da visita, o gerente coloca nas mãos do ex-sacristão meia dúzia de papéis sobre investimentos, acções e planos de rentabilidade. De olhos em bico, o pobre homem faz um esforço para ultrapassar a vergonha e confessa que não sabe ler. O gerente achou piada ao facto e, após uma sonora gargalhada, perguntou-lhe: “bem, se não sabe ler e chegou onde chegou, então se soubesse ler, o que seria de si hoje?” A resposta pronta e humilde termina esta estória: “seria sacristão”. É fácil sacar daqui uma moral para a estória, mas isto não passa disso mesmo: uma estória. Na maior parte das vezes não sabemos se fizemos a melhor opção, até que se passem vários anos, ou décadas, ou até nunca. Mas a vida é feita de opções. Tomar uma opção de vida é como fazemos quando não nos sentimos confortáveis numa cadeira. Podemos mudar de cadeira, meter uma almofada, ajeitar o traseiro balofo, levantar e ir dar uma volta, saltar para o sofá, ficar de pé para o resto da vida, mudar de calças, enfim, tudo são opções para resolver o incómodo. Como sabemos a melhor? Só depois de experimentarmos. E mesmo assim, nada é certo. O certo é que precisávamos de fazer qualquer coisa. E fizemos. pickwick