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Arautos do Estendal

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.

Arautos do Estendal

08
Mar14

A flash of lightning…

pickwick

The word comes from French éclair 'flash of lightning', so named because it is eaten quickly (in a flash) (in Wikipédia).

 

Durante o delicioso jantar com a loirinha, sucedeu um episódio multipolar que me esquivei de relatar, tanto pela sensibilidade da questão, como pela sensibilidade da minha maquineta de batimentos cardíacos. Resumidamente, chegámos à mesa, ela tirou o casaco e eu agarrei no telemóvel para chamar o INEM por causa da imediata taquicardia… mas, a verdade é que não consegui ligar para ninguém, porque a loirinha teve a simpatia de massacrar-me violentamente com o anúncio de que tinha o fecho éclair do vestido encravado e não conseguiu desencravá-lo até cima, pelo que ficou algures… A taquicardia evaporou-se e deu lugar a uma perigosa paragem cardíaca! Por uns segundos, a minha língua descaiu-se pateticamente para fora da boca, esgueirando-se pelo lado direito das beiças entreabertas. Um gajo desligado do mundo dos vivos, ainda que por segundos, nunca consegue segurar a língua. Está comprovado.


Findos uns quantos segundos, alheado e embasbacado no mundo parolo dos semi-mortos, voltei, como que ressuscitado, mas possuído de um gravíssimo Transtorno Multipolar Simultâneo Estagnado! Quando sou possuído por um TMSE, consigo fazer parecer qualquer transtorno psiquiátrico irrecuperável com uma ida à pastelaria. Num TMSE, os Polos do transtorno acontecem todos aos mesmo tempo, mas eu não mexo uma unha. Insólito, eu sei. É um transtorno estagnado, portanto. E assim foi.

 

Polo 1
- Queres que te desencrave isso?
- Consegues?
- Claro, é um instante.
Rodeei a mesa de 2 km e acerquei-me das costas da loirinha, saltitando com a leveza de um elefante de nenúfar em nenúfar, quase me babando com a ideia de esfregar as pontas dos dedos nas costas dela. Ela manteve-se estática, como quem se auto-anestesiou com um pudim. Com jeitinho, deslizei o fecho dois centímetros para baixo. A seguir, devia puxá-lo para cima, com jeitinho, mas, algo me atraía como um buraco negro para as costas dela. Não me aguentei e puxei-lhe o fecho todo para baixo! Ela ainda guinchou que não sei o quê de badalhoco mas eu queria lá saber! Aquelas costas estavam embrulhadas num mega-corpete do século XVII, de cor violeta-claro-choque e cordame cor-de-licor-beirão!!! Quem guinchou forte e feio fui eu! No fundo das costas, uma tatuagem com a letra da canção Ó Laurindinha rematava a surpresa. Ainda passei os olhos pelos ilhós cromados e por uns pêlos estranhos que se esbatiam debaixo das barbatanas de baleia, mas não aguentei mais: atestei o copo com água, subi à cadeira e atirei-me de cabeça, afogando-me dramaticamente naquela imensidão de líquido, como escapatória para a situação tão desagradável.

 

Polo 2
- Queres que te desencrave isso?
- Não faz mal, pode ficar assim, ninguém nota.
- É um instante, conheço uma técnica porreira.
Rodeei a mesa de 2 km e acerquei-me das costas da loirinha, deslizando como que por cima de uma placa de gelo. Descalcei o sapato do pé esquerdo, rodei o tacão para a esquerda e saquei um sabonete Dove com essência de bigodes de camarão. A loirinha olhou para mim, mas, perante o meu ar de infinita sapiência, baixou os olhos para o guardanapo. Com a habilidade manual que resulta de séculos de experiência, esfreguei o sabonete no fecho éclair, para cima e para baixo, meia dúzia de vezes. Entretanto a loirinha começou a balancear a nuca, gemendo baixinho qualquer coisa. Não liguei e passei para a fase de teste do fecho. Incrível! Ficou como novo! Mais um jeitinho e, por descuido, o fecho desceu todo até baixo. A loirinha tossiu.
- Esfrega… sussurrou ela.
- Queres que te esfregue as costas com sabonete?
Grande maluca, pensei eu. Não querendo passar por desagradável, acudi ao pedido. Depois de três passagens nas omoplatas, para aquecer, molhei o sabonete no flute de champanhe com pedaços de fruta e comecei a ensaboar aqueles delicados costados. Ela gemia já com um ruído indisfarçável. A espuma da ensaboadela começava a avolumar-se, escorregando por dentro do vestido. E a loirinha passou-se! Meteu à boca uma mão-cheia de azeitonas com orégãos, mais o pires das manteigas e o guardanapo que embrulhava as fatias de pão, subiu para cima da mesa, assobiou para o fundo da sala e nisto surgiu do nada um cavalo alado branco, com malmequeres pintados nos quartos traseiros. A loirinha montou-se no cavalo (o empregado de mesa até bateu as palmas, que mulher de saia curta a montar a cavalo é sempre aquele espectáculo) e desapareceu pela janela sem partir o vidro. Até hoje, ainda não percebi como é que o vidro não partiu. Duplo, ainda por cima!

 

Polo 3
- Ó miúda! Isso são maneiras de sair para jantar?
- Errr… quer-se dizer…
- Xiu! Mais valia teres vindo de pijama!
- Hein?!
Levantei-me de rompante, amarfanhei a vela que emprestava algum romantismo ao jantar e meti-lhe a língua no pavio. A loirinha abriu a boca de espanto com o “pfffff” da chama a extinguir-se. Rodeei a mesa de 2 km e acerquei-me das costas da loirinha, de cera em punho. Com inusitada habilidade, esfreguei a cera ainda quente no fecho. Quente demais. Alguma cera derretida entranhou-se no fecho, arrefeceu, endureceu, e nem para cima nem para baixo, o raio do fecho. Corri até a uma mesa a alguns metros de distância, onde um casal de namorados se beijava apaixonadamente (a mesa deles era mais pequenina), espetei dois bufardos no moço, rasguei a blusa à rapariga (o sutiã azul-escuro com ursinhos ficava-lhe mesmo mal) e voltei em passo acelerado com uma vela acesa roubada sem que eles percebessem. A loirinha nem se mexia, tal era a atenção e incredulidade com que acompanhava o desenrolar dos acontecimentos. Com a nova chama, derreti a cera do fecho éclair, que começou a deslizar, mas a inclinação da vela acesa deixou escapar uns grossos pingos de cera quente para o fundo das costas da loirinha, que começou a uivar e a chamar-me coisas indelicadas. Veio o empregado de mesa com o balde e a esfregona, em socorro da donzela, e despejou-lhe dez litros de água perfumada com detergente aroma a bosques e framboesas. Para mim, sobrou a esfregona, que o homem entusiasmou-se e quis-me levar os dentes com ela. Nisto apareceu o moço a cuja namorada eu tinha rasgado a blusa, e, não por causa dos bufardos nas mandíbulas que de mim recebeu, mas pelo sutiã descoberto da namorada, encheu-me o corpo de pancada com uma cadeira. Entretanto, a loirinha começou também a bater-me com a toalha da mesa (enrolada, para doer mais), e ainda veio um cão ladrar à janela e a cozinheira a atirar-me com frasquinhos de especiarias. Parecia o fim do mundo. Na falta de alternativa, saí a correr, com pedaços de pano da esfregona entalados nos dentes, um braço entalado com o pescoço entre os pés de uma cadeira e a orelha cheia de orégãos. Nem cheguei a provar o tamboril.

 

Polo 4
- Ó… faxabor! – chamei eu, a ver se o empregado de mesa aparecia.
A loirinha olhava-me, enternecida, certamente pensando que eu ia pedir uma flor bem cheirosa para lhe entalar na orelha ou uma música romântica para dançarmos e abrirmos o apetite para o jantar.
- Diga.
- Tem um lápis?
- Só um momento.
Enquanto o empregado foi buscar o lápis, olhei para a loirinha com o ar mais armado-aos-cágados do mundo, braço direito apoiado nas costas da cadeira, joelho ao nível da mesa… só me faltava mesmo um palito nos dentes, óleo de fígado de bacalhau espalhado no cabelo e um tufo de pêlos negros a espreitar pelo colarinho.
- Aqui tem.
- Obrigado.
Saquei do canivete suíço escondido na peúga, puxei a lâmina e em poucos segundos tinha o lápis mais afiado que um bisturi. Ergui-me da cadeira, como se fosse bater com a testa no tecto, rodeei a mesa de 2 km e em seis passos largos meti-me atrás das costas da loirinha. Ela, paciente, aguardava. Com jeitinho, comecei a esfregar o fecho éclair com a ponta afiada do lápis. O pó de grafite que se desprendeu do lápis, começou a entranhar-se no fecho e serviu de lubrificante natura. Em poucos segundos o fecho ficou como novo.
- Tens umas costas muito bonitas.
- Obrigado!
- Deixas-me ver melhor?
- Claro que não!
- Vá lá, faço-te um desenho artístico de graça.
- A sério?!
- Claro.
- Pronto, está bem…
Já com o passaporte na mão, passei o lápis para os dentes, puxei o fecho para baixo, agarrei-me ao sutiã e desapertei-o com mestria. As costas desnudadas gritavam por uma obra-prima.
- Ai, está frio…
- Xiu! Pede umas malaguetas que isso passa-te já.
Assim que o lápis voltou aos meus dedos, surgiu um casco de cavalo. Seguiu-se o resto do cavalo, uma amazona com molas de roupa nos mamilos, um dragão a chamuscar o rabo ao cavalo, um cachorro rafeiro chamado Crespim a morder as patas ao dragão, uma rã inchada a fumar cachimbo e a declamar a letra da canção “O Rapaz da Bilha” da Cátia Palhinha, e um peru recheado com Bolas de Berlim. Inigualável. Sublime. Coiso.
- Que tal?
- Vai ao WC e vê.
Subi-lhe o fecho até cima e fiquei a vê-la circundar as mesas e as colunas a caminho da casa-de-banho. Assim que desapareceu atrás da porta, tirei a mão detrás das costas, olhei para o sutiã carmim com cachos de bananinhas e cestas de tangerinas, e sorri. Ela não tinha dado por nada. Silenciosamente, esgueirei-me para o fresco da rua, meti-me pela escuridão do mato e, consolado com a nova aquisição, fiz os 30 km que me separavam de casa e da minha sensacional colecção de sutiãs com motivos de frutas, legumes e seres vivos. pickwick