No pretérito fim-de-semana, como diriam alguns amadores de repórteres, desci até à capital, para mais um banho de ociosidade, mulheres e alarvice. É sempre bom ir visitar a família, portanto.
Viajei de comboio, aproveitando o contraste entre o preço do bilhete ida e volta e o balúrdio que teria que pagar de combustível para fazer a mesma viagem no conforto do meu espectacular automóvel. Viajar de comboio é muito bom. Um gajo liga o computador portátil, adianta alguns trabalhos, ouve uma musiquinha, deita o olho às meninas que vão sentadas nos bancos à frente, deita o olho às meninas que circulam pelo corredor, e enfim, é um gosto.
Estas idas à capital implicam, na esmagadora maioria das vezes, uma refeição chinoca, dado que o meu paizinho é um fã dos restaurantes chineses e eu não me faço rogado, embora a comida chinesa dos restaurantes na Europa não tenha nada que ver com a comida chinesa que se come nos restaurantes chineses da China. Mas isso são pormenores. Ora, mais uma vez, lá fomos a um restaurante chinês, ali para os lados da Parede, que eu desconhecia por completo mas que já era local de romaria para o meu paizinho.
A dona do restaurante era uma senhora dos seus quarenta anos, mais década menos cinco anos, magrinha e pequenina, com uma fronha de poucos predicados e um sorriso repetitivo. Daquele tipo de mulheres que a gente olha, tira as medidas, e pede à Nossa Senhora para que não a faça cruzar-se muitas vezes no nosso caminho. Enfim, simpática, mas um atentado à beleza feminina.
A trabalhar com ela, estava outra chinesa, bem jovem, mais encorpada, mais alta, mas toda jeitosa, sem excessos. Daquelas mulheres que a gente olha, tira as medidas, mas parece que é preciso estar sempre a medir outra vez, para eventuais ajustes e acertos. Trajava à mulher europeia, com umas sapatilhas e uns calções, com um ar de grande descontracção. Não se mostrava muito à vontade com a língua portuguesa, ao ponto de ter confundido uma Fanta Laranja com um Ice Tea. Um senão: uma borbulha feiosa mesmo em cima de uma das narinas, a borrar de vermelho escuro um rosto que até era muito agradável à vista.
No final da refeição, e chegada a hora dos pagantes, o meu paizinho lá foi ao balcão, solicitar a conta e apresentar o cartãozinho. Eu fui atrás. Mas, o pagamento foi adiado pela tendência crónica do meu paizinho para meter conversa com chinesas. Neste caso, com a menina da borbulha, que ele ainda não conhecia.
Nestas situações imprevistas, eu ainda tento ser um pouco optimista e imaginar que a coisa ficará por uns poucos segundos, meia dúzia de palavras de circunstância e está feito. Sou mesmo ingénuo…
Bom, acho que a conversa começou mesmo com o meu paizinho a querer saber de onde ela tinha vindo, que não a conhecia de lado nenhum. Vinha da China (grande novidade!) para trabalhar numa multinacional com delegação em Lisboa, mas, nos tempos livres, vinha ajudar a amiga no restaurante. Ora, convém referir que o meu paizinho tem problemas sérios de audição, não domina o inglês oral, não domina o cantonense (dialecto outrora implantado no sul da China), não domina o mandarim (dialecto oficial que já meteu o cantonense na reforma), e tem uma lábia do outro mundo. A jovem apenas dá um jeito no português para o desenrasque, domina o inglês e, claro, domina a língua materna – o mandarim. Portanto, condições instaladas para uma conversa às apalpadelas.
Depois, ela quis saber por que cidades chinesas o meu paizinho já tinha andado, e lá fez ele um esforço de memória para relembrar nomes chinocas. E depois, ela quis que o meu pai dissesse qualquer coisa em chinês. Veio-me logo à ideia que ele ia aproveitar para mandar um piropo, mas, pensei, talvez não, que não fica bem a um senhor de setenta e quatro anos andar a mandar piropos a meninas de vinte e poucos. Acho que até fechei os olhos, como que a pedir a intervenção divina para que ele não se esticasse, mas parece que a oração não é algo em que possa ser mestre. Com um sorriso mafioso nos lábios, o meu paizinho lá disse em cantonense: “hou leng”! Fechei os olhos, desesperado. Como toda a gente sabe, “hou” quer dizer “muito” e “leng” quer dizer “bonita”.
Como se não bastasse, a rapariga não percebia mesmo nada de cantonense, logo não percebeu nada, logo foi necessário traduzir, em voz (muito) alta, em pleno restaurante, ao que se seguiu uma exibição do meu paizinho na escrita de caracteres chineses, aproveitando o facto de o mandarim e o cantonense serem dialectos completamente distintos mas que partilham a mesma escrita.
Por vontade do meu paizinho, ficava ali o resto da noite a desenhar caracteres chineses e a mandar piropos à rapariga, mas, se por um lado eu me afastei uns centímetros para mandar uma SMS de socorro a ver se alguém me ligava e assim tinha desculpa para bater em retirada, por outro, a rapariga começou a sentir-se mal por estar ali a dar conversa a um velhote quando se tinha comprometido ajudar a amiga nas lides do restaurante e aproveitou essa desculpa para zarpar do balcão e terminar a conversa. E pronto, viemos embora.
Nestas coisas, definitivamente, eu não saí ao meu paizinho. Sou mais do tipo de me armar em “sniper” e ficar, de forma muito camuflada, a abater alvos à distância. Enfim, gostos… pickwick