Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.
Ela, do alto das suas esbeltas e intrigantes pernas, veio caminhando quintal abaixo até ao estendal, dependurando a toalha onde, minutos antes, tinha limpo as últimas gotas de água. O Arauto viu, porque o Arauto estava lá. E tocou a trombeta.
Alguém deixou esta pergunta à porta de um post. Confesso que me engasguei por uns momentos, quando a li. Um gajo ali a discursar sobre a felicidade e outras baboseiras da vida, armado em sabichão, e depois pimba! Apanha com uma destas e fica sem saber o que dizer. Porque, cá no fundo, não é assim tão fácil dizer sim. Superficialmente, é fácil, é como se responde quando nos perguntam se queremos dar uma trinca num pastel de nata. Ser-se feliz, não é para todos. É, para começar, um conceito demasiado simplório para o emaranhado de variáveis que condicionam as nossas vidas e as nossas relações. Ser-se feliz, é equacionar mil e uma dessas variáveis e chegar ao final com um saldo a chegar ao cimo da escala, porventura só com algumas lacunas insignificantes tipo Mercedes Coupé, veleiro de três mastros, ilha privada no Pacífico, etc. Ser-se feliz é querer ser-se assim. Não vamos a passar à beira da estrada e de repente cai-nos a felicidade nos braços, toda risonha, a dizer cheguei! e a abanar a cauda. É daquelas coisas que para ter, temos que querer primeiro. E querer com muita, muita, muita força. O ser humano, por mais incrível que pareça, está aparentemente destinado a ser feliz aqui em baixo, na Terra. Como diria alguém, andamos cá é para sermos felizes. Virando a medalha, temos o facto de o ser humano tender, irremediavelmente, para o desastre, a destruição, a violência e a consequente infelicidade. É mais forte que nós, convenhamos. A única coisa que nos separa pelo menos a alguns é o facto de vivermos em sociedade, com regras, leis e contextos que nos condicionam a liberdade de explosão. Muitos de nós, uma vez atrás da outra, deitam para trás das costas todas as oportunidades e mais algumas de alcançarem um pedacinho de felicidade, ainda que minúsculo. O ser humano corre. Fá-lo todos os dias, de manhã à noite. Se não o faz fisicamente, o seu cérebro encarrega-se de o fazer, sozinho, neurónio ao lado de neurónio, num lindo gesto de solidariedade. Mas, ser feliz, é conseguir parar. Parar no tempo, na correria, estagnar os miolos e contabilizar o que queremos alcançar na vida e o que já alcançámos até agora. Mais difícil ainda, mostrarmos a nós próprios que mandamos no que queremos, e que não é o que queremos que manda em nós. Somos nós a dizer e a mandar: é isto que queremos para sermos felizes! Metas. Fasquias. Atingíveis, acima de tudo. De preferência, a breve prazo. Que a felicidade, tal como as princesas, não se deve fazer esperar. Quanto a mim, não sei bem. Há uma série de pequenas grandes coisas que não consigo equacionar devidamente para poder estabelecer uma meta, pois parece que flutuam. A esmagadora maioria das metas que estabeleci estão atingidas. São metas pequeninas, que de pequeninas e simples coisas se faz a nossa riqueza interior, que só a nós diz respeito. As que não estão, hão-de estar, mais minuto menos ano, mais mês menos década, sem pressa e sem estresse. Em resumo, estou no caminho para lá chegar. À felicidade. Espanto quaisquer dúvidas que me possam assaltar, a meio deste caminho, pois sou dono e senhor dos meus pés, que me levarão aonde os mandar. pickwick
Na gare, há bagagens. A abarrotar, apenas cheias, ou com aspecto mais leve. Mochilas, sacos, caixotes selados, malas e maletas. Um estranho interrompe-me a observação. Roupa andrajosa, saco roto: "Falta-me 1,80 para apanhar o comboio de Coimbra... será que me pode ajudar?" Meneio a cabeça. Percebo depois que o preço varia conforme a pessoa abordada. A senhora dos altifalantes fala ininterruptamente: "O comboio rápido Intercidades com destino a Beja circula com 9 minutos de atraso... Vai dar entrada na linha número 5 o comboio suburbano com destino a Braço de Prata..." A senhora de botas de cano alto, sentada à minha esquerda, continua a mastigar batatas ruidosamente. Aqui e ali, os beijos apaixonados multiplicam-se, sente-se o ambiente saudosista. A minha partida, hoje, não passa de rotina. Talvez por isso tenha um aspecto menos ansioso que os demais. O comboio chega sem pressa, a contrastar com a multidão que se atafulha na plataforma. A entrada desordenada anuncia que nada está diferente: as pessoas continuam a querer sentar-se primeiro. O corropio de pessoas e bagagens mantem-se durante alguns minutos, e há sempre alguém que procura o seu lugar já com o comboio em movimento. Desta feita, foi a menina que tinha bilhete para o lugar ao lado do meu, que com um ar ainda um pouco perdido (embora amistoso), afirmou que se iria sentar no banco de trás, para viajarmos "mais à vontade". Cheia de boas intenções, a moça. As distracções são variadas, no decorrer da viagem: jogam-se cartas, lêem-se magazines, ouve-se música, ou simplesmente assobia-se. Eu escrevo enquanto vagueio o olhar pela carruagem. A menina do banco de trás faz-se notar com um leve toque no meu ombro esquerdo. "Vou ter mesmo de me sentar ao seu lado...". Respondo com um sorriso, enquanto me levanto. Já novamente sentados, pondero se deva continuar a escrever... os olhos curiosos da menina passeiam-se de quando em vez pelas minhas letras. Talvez fique por aqui.
A menina foi buscar um livro à mochila. Está de calças verdes, de bombazine. Estou com fome, estamos quase a chegar. riverfl0w
Hoje, chove com força! Ontem também choveu, mas menos impressionante, apesar da ventania. A apreciação da chuva faz-se sob a influência do local e da companhia, não fosse a queda de água um fenómeno psicológico. Por alturas da Primavera, a chuva já não tem a força de agora. Não é que caia com menos força ou molhe menos, mas deixa de ser tão impressionante como agora. É tudo uma questão de hábito, bem vistas as coisas. Como quem deixa de se impressionar com o berbequim do dentista e o arrepiante raspar da broca entre os dentes, lá para a centésima consulta. Mas, estas são as primeiras chuvas de Outono. A valer. Se pingou alguma coisa até agora, não contou. Espero que já estejamos no Outono, já agora. Nunca sei quando muda, o que também não é importante, pois o Outono começa quando o vento sopra as folhas acastanhadas caídas no passeio. Esta chuva, por a ela não estarmos habituados, parece novidade. Há uma mistura de sentimentos que deixamos passar ao lado, ano após ano, de tão vulgar que pensamos que é. Sente-se que algo acabou. Não só os bikinis fio-dental, o geladinho da Olá e a pele bronzeada das meninas que passam, mas também aquele calor e aquela calma que nos fizeram companhia durante alguns meses. Vem à memória a estória da cigarra e da formiga, que não vivemos mas que sentimos cá dentro, em que se acabou o bem bom, e é necessário começar a preparar as coisas para o Inverno que aí vem. Sente-se um arrepio pela espinha abaixo e uma necessidade brusca de procurarmos um local acolhedor onde possamos saborear um pouquinho das lembranças do tempo quente e seco. Mesmo dentro de casa ou de um carro, olha-se pela janela, e o arrepio ainda circula, como que a natureza a dar-nos aquele toque de cotovelo para nos acordar do marasmo do calor. Temos o conforto, mas, ainda assim, demoramos um pouco a tomarmos consciência disso. Como se metade de nós estivesse lá fora, à chuva, desorientado, desesperado para chegar até aqui. Gritamos Hei! Pssstt aqui! e fundimo-nos novamente em nós próprios, esfregando as mãos de contentes por aqui estarmos, abrigados. Quentes. A chuva traz as nuvens, ao contrário do que se pensa. As nuvens vêm por arrasto, porque a chuva é que é mesmo necessária. E estes apêndices, negros, felpudos, acelerados pelo vento apressado, roubam-nos a luz e a cor. Sente-se que de repente tudo ficou cinzento, os sorrisos transformaram-se em expressões carrancudas e desiludidas, e o meio-dia parece mais um entardecer. Fazemos um esforço para procurar algo com que nos alegrarmos, um motivo para sorrirmos. Nestes momentos, somos confrontados com a derradeira questão: somos felizes? É uma pergunta que, inconscientemente, a nossa alma faz ao nosso coração, no segredo daquilo que nos passa ao lado. A resposta do coração, dada no mesmo tom camuflado, condicionará as nossas feições e o nosso estado de espírito. Porque a felicidade não se deixa vencer por um arrepio na espinha. pickwick
É feio plagiar-se, mas, aproveito este breve momento em que a vergonha foi dar uma curva ao virar da esquina, para plagiar alguém: Sonha com o Sol e a Terra a beijarem-se.... como nós.... Isto é o que se chama o mote introdutório. Também se pode interpretar como uma clara provocação, se houver contexto para tal. É que, a bem dizer, e porque ainda não atingimos a senilidade profunda, o sol e a terra não se beijam. Certo? A terra não tem beiços. Mesmo que tivesse, queimava-se tudo. Todo o mundo sabe que perto do sol não se aguenta. Aquilo é um braseiro brutal. E o sol teria beiços feitos de quê? Francamente, não pode ser. Só vejo mesmo aquela frase como sendo uma provocação. Uma grande provocação. No devido contexto, está claro. Assim tipo tentar fazer uma história com coisas que não existem, sobre coisas que existem, mas disfarçando para não se dizerem mesmo as coisas que existem, porque as que não existem são sempre um bom disfarce. Ou parecido. Isso tem um nome, que se aprende na escola, mas agora não me ocorre, nem o nome, nem a escola. Mas posso dar mais cordel à coisa. O sol e a terra. Lembra-me a madrugada, fria, escura, como que abandonada. Por cima das colinas, chega o sol, sorridente, quente, reconfortante. Aos poucos, a terra sorri-lhe também, pois acabou-se a solidão de mais uma noite de trevas. Há ali uns momentos íntimos que nos escapam numa observação pragmática de quem ainda esfrega os olhos. Mas eles estão lá, esses momentos íntimos. Faz lembrar um par de namorados que não se vê desde o dia anterior, atulhados em saudades e mais saudades, ansiosos por caírem nos braços um do outro, cada qual gelado e triste por uma noite passada ao abandono, mas também cada qual sentindo-se o sol que aquecerá, com um abraço carinhoso, com um beijo atiçado, a alma fria do outro. Faz-se um papel duplo, a bem dizer, reconfortados por sentirmos que nos aquecem, satisfeitos por sentirmos que aquecemos alguém. Como o sol aquece a terra. Afinal de contas, é como que um beijo do sol na terra, devolvido na mesma moeda; se não houvesse terra para aquecer, realmente, para que precisava o sol de ser sol? Bastava-lhe ser um calhau frio e mal jeitoso a flutuar na imensidão do universo. Como quem não ama. pickwick
CD. Compact Disc. Identifica genericamente os discos ópticos. Está bem. Isto é o que diz num glossário que encontrei na Internet. Nada de novo, até porque CDs são CDs e já toda a gente sabe o que são e para o que servem. Quando derretidos com um isqueiro dão formas artísticas muito originais. Voam, se não precisarmos mais deles e estivermos chateados com alguém. Enfim, é o que se chamam objectos multiusos. Mas, este título reverte para algo mais animalesco do que um prato sintético. Ontem cruzei-me com uma frase que me deixou meio pendurado de uma teia de aranha, algures lá bem no alto. Dizia assim: pensava que o meu coração já estava muito duro para amar Coração duro. CD. Eu sei, não bato certo, com estas associações de siglas. Não faz mal. Fiquei a pensar para comigo como é esta coisa de um coração muito duro para amar. Uma renúncia, voluntária ou involuntária, àquilo para que o coração foi mesmo desenhado e construído: amor! Dar e receber. Como é que se chega a tal ponto? A vida traz-nos dissabores, amarguras e muitas frustrações, mas é também fonte de alegria, júbilo e muitos sorrisos. Creio que isto passa mais pelo voluntário do que pelo involuntário. O que não faltam são pessoas que passam por tormentos atrás de tormentos, amargam cada minuto que passa, e mantêm o coração sempre disponível para dar o amor. Eternamente fofos, esses corações. Como uma Bola de Berlim acabadinha de sair do forno. No entanto, muitas outras pessoas optam por congelar o forno. Não há cá bolos acabados de sair do forno para ninguém. É dureza e mais nada. Nunca se sabe bem se é uma opção estratégica para não levarmos mais daquelas facadas da vida, se é por vermos o nosso mundo confinado a um carreiro sinuoso numa montanha agreste, mesmo à nossa frente. Algo nos faz sentir o coração duro. Incapaz de amar. Muito lá no fundo, desejamos ser capazes de o fazer, com muita intensidade, com muita luz, e por muito tempo, mas, ou já consideramos isso um sonho inatingível, ou simplesmente recusamos enveredar por esse trilho. É uma sensação muito estranha. Uma espécie de conforto mórbido, como que estendidos num caixão, em pleno cemitério dos sentimentos, num marasmo, numa paz desassossegada. Até ao dia em que o destino nos prega uma partidinha e, quando damos por isso, zás! Somos apanhados de surpresa por um sentimento que já quase nos custa a reconhecer, tão distante fica a prateleira para onde o atirámos no passado. Cambaleamos com o peso e ainda levamos algum tempo até conseguirmos reunir as tropas lógicas para pedirmos contas ao coração sobre o que se passa. Encostamo-lo à parede com uma espada de cera e perguntamos: Então, pá? Tás parvo, ou quê? Tá a dar-te alguma coisa ruim? E ele responde timidamente Simmmm . Ligeiramente irritados com a resposta, pressionamo-lo ainda mais com a espada. Esta, começa a derreter-se. Se fossemos espertos, usávamos uma espada a sério, mas não, com o coração, fala-se sempre com uma espada de cera. É uma regra! Sem excepção! Esbugalhamos os olhos perante a cena, a cera a derreter-se toda, o coração a rir-se pra gente. Fulos, perguntamos Então, mas qesta m ., pá???!!. A resposta vem crua e fulminante: Cala-te, oh mongo, monte de esterco mal disposto! Não vês que estou a amar?. (Nota do autor: o coração fala assim, mas é só fachada; ele gosta da gente, mas às vezes tem de dizer assim estas coisas ordinárias, para ser mais convincente e ser levado a sério ) pickwick